Era só um iogurte batido. De banana. "Banana lassi", dizem eles. "Special", dizia concretamente aquele, antes do fruto. Especial?
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Só podia ser massala, como o chá, a comida, o ar que se respira em Varanasi. Condimentado. Estava calor. Muito. Ao ponto de turvar a visão. Para trás ficavam as piras infernais de Manikarnika Ghat. Seria calor ou a alma esfumada daqueles indianos (ou indianas) que cruzámos na labiríntica e estreita Cidade Velha, carregados em macas de bambu, envoltos em sedas brilhantes, com pequenos véus, três, armados na cabeça, no colo, nos pés? Seria calor ou a ilusão de uma viagem medieval, sem ar a circular, intocáveis em vãos de escada, cadáveres abençoados no Ganges antes de serem entregues à divindade em chamas? As vielas reduzidas conduzem os passos, não há vontade própria que vingue neste novelo de passado. Lá em baixo, no rio, dezenas de milhares entregam a alma à água castanha - um milhão de vezes mais poluída do que permitem as regras ocidentais. Lavam o corpo e o cabelo, os sovacos e os dentes, as crianças e os velhos, as vacas e os cães, mortos estes, suspensos na corrente. Não têm calor, eles, pelo menos. Era só um iogurte. Batido. De banana. De repente, levanta-se uma brisa que engana os 40 graus. De repente, o último trago do lassi sabe ao arrasto de dez cervejas. De repente, o inferno torna-se real, o calor insuportável, as pernas falham, a alma divaga sobre os telhados, em uníssono com os papagaios com que os putos animam os céus, em uníssono com os macacos de que fogem os putos, dentes arreganhados, olhares mortíferos. Tanto macaco! E as vacas - sagradas, a deambular quase mortas, largas, arrastadas apenas pelo tiquetaque do relógio através das vielas - transformam-se em terríveis ameaças. Crescem-lhes os cornos. A guest-house, quarto com vista para o Ganges, afinal, é uma fábrica, cama entre canalizações cinzentas, uma praia de mar lá fora, palmeiras e tudo. O desespero. Nosso e do rapaz da terraço que nos serviu o iogurte. "Calma! Calma! Há pessoas a quem não faz nada! As pessoas gostam! Bebem vários!" Mas bebem o quê, afinal? Os desdos escuros abrem-se sobre uma bola incerta. Raiz de cannabis de cheiro nauseabundo. Bang! Suores frios. O especializado lassi, mais ou menos tolerado numa certa Índia. Seria calor?