JN assiste a aula de "Introdução à Poesia" dada por cirurgião a alunos do ICBAS. "Quebrei-lhes a inocência".
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Não sobe à secretária como o desconcertante professor John Keating, não transgride o método de ensino, não incentiva os alunos a rasgarem as páginas dos livros que não lhes rasgam a pele, nem os instiga a tratarem-no, como no poema de Walt Whitman, por "Oh Captain, my Captain". Mas 32 anos depois da estreia de "Clube dos Poetas Mortos", João Luís Barreto Guimarães (n. 1967), médico e poeta em doses gémeas de exultação e entrega, protagoniza, no pioneiro Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto, a realidade mais próxima daquela ficção que talvez tenha sido a responsável, em toda a história do cinema, por mais pessoas ter conduzido à floresta da poesia.
Em 2021, numa licenciatura de Medicina, com 32 alunos de média superior a 19 valores, o autor de "Mediterrâneo", obra de 2018 duplamente premiada, é a inspiração que, como ambicionou Keating, "pode tornar a vida deles extraordinária". Mesmo se a maioria daqueles futuros médicos ainda não levantou o véu que encobre o autor por detrás do professor de "Introdução à Poesia", cadeira opcional do primeiro semestre do segundo ano do curso.
"Não creio que saibam quem sou. E isso é bom", diz, ao JN, Barreto Guimarães, terminada a quarta de 14 aulas em que orienta os alunos pelas curvas dos poemas como Germano Silva guia os turistas pelas ruas do Porto. Como o historiador, também ele conhece os cantos e os becos, o avesso e a voz, os truques e os bastidores de cada texto. Ou, na sua terminologia, "o conteúdo e o continente" do poema. "No fundo, é o que fazemos na Medicina, à medida que vamos ganhando ferramentas: aprendemos a auscultar o coração, depois os pulmões, depois a apalpar uma barriga, depois a analisar o que se passa do ponto vista neurológico. Ou seja, a melhor maneira de apreender o conjunto é analisar cada uma das partes". Este desmembramento, reconhece, não agrada a alguns poetas. Mas o cirurgião plástico pensa de outra maneira.
Quebrar a inocência
"Sempre temos alguma coisa a aprender uns com os outros: posso começar?". Podia ser o início de uma aula, é o início do poema que abre a antologia "O tempo avança por sílabas" (2019), que lhe pertence, mas cujas falas recusa partilhar na sala. "Por pudor". Os autores que emprega como veículos de aprendizagem são sobretudo americanos ou ingleses, mesmo se o seu coração tomba pelos polacos e os croatas. Também há espaço para Jorge Sousa Braga, com quem fundou "Poesia Ilimitada", um blogue que é um mapa-mundo, Inês Lourenço, Vasco Graça Moura ou Manuel António Pina.
Sem ironia, diz que demorou "30 anos e seis meses a preparar estas aulas", e agora que sente que lhe foi dada "licença poética para desvendar alguns segredos", fá-lo com o entusiasmo vibrante de um trapezista que nunca perde o equilíbrio. Como ensinar a encontrar a chave no título. Ou revelar uma ambição de Pina. "Dizia que havia de conseguir colocar a palavra iogurte num poema. E um dia conseguiu". Onde?, perguntou alguém. "Num poema sobre Eugénio de Andrade e a pessoa que dele cuidou no leito da morte". Diz: "Na mão de Ana o iogurte não/ iluminava, escurecia,/ comunhão ajoelhada/ no fundo do coração do dia". A pastilha elástica é o iogurte de Barreto Guimarães. É procurá-la em "Nómada" (2018).
"Quebrei a inocência destes alunos. Deixaram a superfície das coisas, como os nenúfares". Para um leitor amador, há um antes e depois de uma aula assim. "Oh Captain, my Captain!".