“Beautiful” de Ana Rita Xavier e Daniel Conant foi apresentado no Teatro do Campo Alegre este sábado e domingo. Uma prova de que o Festival Dias da Dança (DDD) é um trabalho em construção com os artistas. O esboço da criação já tinha sido apresentado na edição do ano passado.
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Há espetáculos que entram como um sonho demasiado claro, demasiado preciso para ser apenas ilusão. "Beautiful", de Ana Rita Xavier e Daniel Conant, é um desses momentos raros: uma travessia entre o êxtase e a mutilação, entre a liberdade de um corpo selvagem e a clausura de uma mente desfiada.
À entrada, já paira no ar qualquer coisa de antigo e perdido, uma vibração entre a poeira do tempo e o rumor do que ainda está para nascer. Paira a ideia de "Black Stallion" de Carroll Ballard: a infância da visão, o primeiro toque num animal demasiado forte para caber no mundo. Também aqui, Ana Rita e Daniel propõem uma relação de domar e ser domado — só que, em vez de cavalos, são as próprias emoções, os próprios corpos, que se recusam a ser completamente domesticados. "Não há poder sem obediência", dizem, mas o que é a obediência?
Ana Rita atravessa o espaço como quem atravessa uma tempestade: o cabelo colado ao rosto, os olhos muito abertos. Há uma fisicalidade bruta no seu gesto, uma urgência que parece querer escapar do próprio corpo, como se este fosse demasiado pequeno para conter aquilo que sente. Daniel, por outro lado, é a sombra que se desdobra, que molda e perturba; há nele uma vibração de "Eraserhead" de David Lynch, essa sensação inquietante de que estamos presos num sonho espesso e industrial, onde tudo cresce de forma errada, monstruosa.
O espetáculo oscila entre o hipnótico e o grotesco, sem nunca perder a delicadeza. É como ver uma fotografia a preto e branco que, de repente, começa a sangrar pelas margens. Há cenas que se prolongam até quase ao desconforto, o tempo esticado como um elástico prestes a rebentar, mas é precisamente nesse excesso, nessa insistência, que a beleza mais profunda se revela. E sempre as câmaras, a filmar, em permanência como se fosse urgente criar uma memória e torná-la física, ainda que o voyeurismo se agudize no espectador.
A luz, fria e oblíqua, recorta os corpos como se fossem fragmentos de memória, e a banda sonora, feita de sons dilacerados, vozes que quase não chegam a formar palavras, arrasta-nos para dentro de um espaço onde não há chão seguro. Tudo em "Beautiful" é assombro: o que se vê, o que se adivinha, o que se teme.
No fim, o que fica não é uma narrativa, nem uma ideia clara — é uma sensação, uma ferida aberta onde ainda bate qualquer coisa de vivo. "Beautiful" não é apenas um espetáculo. É uma metamorfose. Um sonho à beira do colapso.