“Benvindo… a vida”, filme sobre o primeiro bailarino negro do Ballet Gulbenkian, é exibido esta sexta-feira no Porto. JN falou com Benvindo Fonseca.
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“Benvindo... a vida”, que é projetado em sessão especial no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, às 19 horas de sexta-feira, não é só um documentário; é um abraço apertado à coragem, um testemunho da arte que salva. É a viagem crua, mas profundamente humana, de Benvindo Fonseca – uma entidade dual, bailarino e guerreiro –, que aprendeu a cair e a levantar-se ainda com mais força. O seu filme é um acontecimento.
Nascido em 1964, em Moçambique, Benvindo traz no corpo a dança e no olhar a história de quem atravessou tempestades. Fala com o JN acabado de chegar da China, onde esteve a coreografar para uma companhia de 32 bailarinos. Se obliterarmos o hiato da desgraça, a sua vida parecerá uma passadeira vermelha.
Foi em Lisboa que o seu talento floresceu, no Conservatório Nacional, até se tornar no primeiro bailarino negro a alcançar o topo do Ballet Gulbenkian. Isto, depois de no último minuto ter recusado um convite para dançar na Alvin Ailey, em Nova Iorque. O minuto em que Jorge Salavisa, diretor da companhia, o convidou, depois de o ter recusado, descobrindo nele “algo especial”.
O que se seguiu foi uma ascensão meteórica até chegar a solista. Mas, quando tudo brilhava na sua capacidade nata para interpretar todos os tipos de repertório, a vida, com a sua forma dura de ensinar, levou-o a um escuro alçapão. Uma lesão grave, uma jornada com vários médicos, em vários países, uma prótese na cabeça do fémur e uma atrofia de 15 centímetros numa perna, acrescidas de dores lancinantes.
O paliativo emocional
No dia em que o palco se apagou por dentro, o bailarino pensou que era altura de morrer – porque uma vida sem dança era uma morte. Então, aos 33 anos, aquele que era “conhecido como o rapaz da Coca-Cola” experimenta cocaína, “um paliativo para a dor física, mas sobretudo para a dor emocional”.
Debaixo dessa máscara de pó, a vida foi-se apagando, o brilho embaciou. Com a ajuda da família, núcleo de suporte fundamental, parte para uma nova luta, agora contra a adição. Há 18 anos que faz psicoterapia, “são 18 anos de limpeza e foi o voluntariado com crianças com deficiências mentais que me ajudou a relativizar tudo”, diz Benvindo ao JN.
Mas este não é um filme sobre quedas. É um filme sobre recomeços. Sobre não desistir. Sobre amar a arte ao ponto de deixar que a arte nos salve. Com o apoio da família e a força interior, escolheu a vida. Escolheu dançar outra vez.
Benvindo Fonseca acredita que na vida não há encontros casuais. Durante os passeios com o seu cão, Joshua (anjo da guarda em hebraico), “encontrava várias vezes um senhor muito simpático que também passeava um cão”. Um dia, “ele achou piada à forma como eu estava vestido e comentou que tinha uma plataforma onde entrevistava pessoas que contavam histórias de vida. E convidou-me para fazer uma”. Benvindo hesitou, mas acabou por aceitar. “Quando ele ouviu a minha história, disse logo: não vamos fazer uma entrevista, vamos fazer um filme. E eu pensei, mas a minha história já está contada”.
Celebrar a vida e a dança
O documentário é apresentado pela plataforma Voz Futura, projeto do jogador Danilo Luiz, capitão da seleção do Brasil, que viu em Portugal histórias que merecem ser contadas. E a vida de Benvindo merece. Realizado por Pedro Pirim e Felipe Cantieri, com música de Miguel Berkemeier, “Benvindo… a vida” é feito de escuta, sensibilidade e verdade. Benvindo, por sua vez, entrega-se com humildade. Diz: “Confiei cegamente no Pedro e no Felipe e não me arrependi”. O resultado é um espelho fiel da sua essência, assegura. Um filme que não encena a dor, mas mostra a saída de emergência.
A estreia decorreu no dia 4, em Almada. Depois disso, a viagem segue por várias cidades – Sintra, Évora, Setúbal –, até à celebração do Dia Internacional da Dança (29 de abril) que é, acima de tudo, uma celebração da vida com o coração fora do peito.