Bill Callahan: “Portugal é mais místico, mais crescido do que o resto da Europa”
De regresso aos palcos portugueses para concertos em Lisboa e Porto, quinta e sexta-feira, músico norte-americano Bill Callahan aborda as digressões, o processo criativo, a paternidade e o "lugar secreto que é Portugal".
Corpo do artigo
A raridade das aparições de Bill Callahan pelos palcos portugueses – apenas duas na última dúzia de anos – apenas vem tornar ainda mais especiais os concertos desta quinta-feira, no Teatro Tivoli, em Lisboa, e na sexta-feira na Casa da Música, no Porto.
Criador de canções com propriedades alquimistas, o influente cantautor, nascido há 59 anos no estado norte-americano de Maryland, é tão desconcertante nas entrevistas que concede como nos palcos, oscilando entre o misticismo mais profundo e o humor direto. Sem nunca perder a compostura.
Ainda se lembra dos concertos anteriores que teve em Portugal?
Sempre foi bom, diferente e especial atuar aí! Espanha, França e Alemanha costumam fazer parte das minhas digressões, mas Portugal não me convidava há muito tempo. Por isso, parece-se como um lugar secreto que me fez batalhar para ganhar o meu convite. Na minha cabeça, Portugal é sempre mais místico, verde e “crescido” do que o resto da Europa.
Desta vez, a digressão europeia passa por apenas quatro países. Porquê?
Quatro não é suficiente?! Tenho esposa e dois filhos. Se ficar longe por muito tempo, eles vão perceber que não precisam de mim e lá terei que voltar para a rua com uma mala e sem ter para onde ir.
A maneira como aborda os concertos tem mudado muito?
Costumava pensar que era tudo uma questão de letras. Entregá-las ao público da maneira mais simples. Mas isso mudou. Agora é mais como uma mesa de operação. Vamos expor essas palavras e ver se elas significam alguma coisa.
Quando está no palco, imerso nas suas canções, perde alguma vez a noção do espaço?
Sinto-me hiperconsciente, mas, com o passar do tempo, não me lembro disso. É tudo sobre o agora. Em cima do palco, não nos podemos apoiar em nada do passado. Nem sequer num acorde que foi tocado há cinco segundos, porque ele desapareceu e é preciso tocar outro.
As suas canções são mais enérgicas quando tocadas ao vivo. Não gosta que os concertos sejam uma interpretação fiel dos discos?
Os discos são como mapas. Podemos ver a jornada do ponto A ao ponto B. Mas, na verdade, tocando-os ao vivo, podemos ir do ponto A ao ponto B, mas seguir um caminho diferente. É possível até acabar no ponto C.
O palco é um território onde é mais fácil chegar ao limite?
Mais fácil do que no estúdio, sim. Mas estou a tentar ir além disso. Há algo de bom num disco simples que pode ser expandido ao vivo. Faz com que o intérprete seja como um ouvinte. Improvisando, ampliando. Mas, nas novas gravações que estão a surgir, tento expandi-las com antecedência.
Falou da paternidade. Quão transformadora foi para si?
Tem sido enorme. Se não for enorme, é porque estamos a fazer algo errado.
Com as suas músicas, gosta de virar a realidade ao contrário?
É como se estivesse a usar óculos e alguém escrevesse “realidade” neles. Então, ao colocá-los, estaria a olhar para o mundo através da realidade. E é isso que a música pode ser.
Há muita coerência no seu percurso. As suas preocupações artísticas não mudaram ao longo dos anos?
De forma alguma. Tenho uma tarefa impossível de realizar que recebi no primeiro dia e mantenho até hoje.
Com uma discografia tão longa, é lícito pensar que a criatividade nunca foi um verdadeiro problema para si?
Só quando tive um filho. Aí, fiquei siderado por alguns anos! Tinha um trabalho muito mais importante a fazer, mas achava que precisava primeiro descobrir como fazê-lo. Só muito depois percebi que não havia uma maneira. Simplesmente, fazê-mo-lo. Depois desse soluço, sou uma fonte sem fundo.
O que o inspira a escrever mudou com os anos?
Sou infinitamente fascinado pela vida – humana, animal, planta, espírito, alienígena e outros. Isso é o que me inspira. A composição não mudou desde o primeiro dia. Tenho uma ideia, sinto um pouco de cócegas e então escavo ao redor até encontrar esse fóssil ou remanescente.
A propósito das mudanças que as suas canções sofrem ao vivo, gosto de vê-las como um edifício inacabado?
Vejo-as como algo mais líquido. Como uma poção. É possível adicionar sempre um pouco mais a uma poção. O que adicionamos pode melhorá-la ou anular certos efeitos. É líquida e depois desaparece. Mas a receita está aí para misturar a poção novamente quando necessário.
Em tempos de incerteza, o papel da música torna-se ainda mais relevante?
Sim, a música é tudo. A música é a solução. Música na poção!