O primeiro concerto em Portugal do cantor e compositor norte-americano foi num Coliseu do Porto esgotado, rendido e com zero telemóveis à vista na plateia. É uma experiência singular ver e ouvir ao vivo uma lenda do tamanho de Bod Dylan.
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Não houve explosões, fogo de artifício, pulseiras luminosas, lá-lá-lás cantados em uníssono, ecrãs de plasma de pasmar ou elogios pirosos à hospitalidade tuga. O que o Coliseu do Porto presenciou na noite de sexta-feira foi "apenas" um concerto de sombras e de música. Da boa. Muito boa.
Tal como entoou em "Black rider", uma das canções inaugurais do espetáculo no Porto - Lisboa acolhe-o este domingo e segunda-feira no Campo Pequeno -, Bob Dylan foi o cavaleiro de negro que nos iluminou a noite, um mestre de cerimónias tão austero quanto competente que nos conduziu pelas diferentes galerias do grande cancioneiro musical norte-americano, ou seja, do seu próprio repertório.
Ao longo de 110 minutos, foi o "crooner" compenetrado, "o bluesman" sofrido e até um rocker discreto, dimensões distintas mas complementares de alguém que poderia facilmente ter servido um alinhamento à medida dos gostos mais populares, com uma sucessão de temas que ajudaram a mudar a face da música.
Ao invés disso, Bob Dylan, 82 anos feitos em 24 de maio, optou por "maneiras árduas e barulhentas" (tradução possível do disco de 2020 que dá título à digressão em curso, "Rough and rowdy ways") de nos confrontar com as suas dimensões mais misteriosas, como se fossemos testemunhas silenciosas de um processo de (des)ocultação permanente.
Com o palco mergulhado em grande parte na escuridão, era a plateia, mais iluminada do que é hábito, que parecia mais exposta do que o próprio músico, numa curiosa inversão das regras de jogo do espetáculo.
"Para onde estão a olhar? Não há nada para ver", cantou em "False profet", um dos nove temas de "Rough and rowdy ways" incluídos na 'setlist', totalizando mais de metade da duração do concerto. As restantes canções, do inaugural "Watching the river flow" a "When I paint my masterpiece", foram retiradas do seu inesgotável baú de preciosidades.
No final de cada música, as luzes apagavam-se por uns longos segundos e só então, com a plateia em suspenso, a sua voz voltava a emergir das profundezas, mais gutural do que nunca.
Se fechássemos os olhos por um instante, não nos seria difícil imaginarmo-nos num qualquer bar decadente numa aldeola perdida do Sul dos Estados Unidos, com uma banda a guiar-nos pela noite dentro, desfiando agruras e memórias de um modo impassível.
Privados do uso de telemóveis à entrada - sim, é possível estar num concerto sem empunhar os smartphones durante 99% do tempo, pasme-se; e os fotógrafos profissionais também ficaram de fora, Bob Dylan não se deixa fotografar em palco desde 2019 - aos espectadores nada mais foi pedido do que recostarem-se na cadeira e contemplarem o monumento vivo que são as canções do já octogenário trovador, como era possível ler há dias neste jornal.
"Quanto mais tempo pode isto durar?", perguntou, com a voz envolta num manto de névoas, em "Crossing the rubicon". Esperemos que muitos anos, Mr. Dylan, muitos anos. "Play it again, Bob".