Novo filme biográfico sobre a banda rock Queen e o seu carismático cantor Freddie Mercury está a desapontar os críticos. É uma "versão sanitária para famílias e falta-lhe verdade sexual", dizem.
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Há um aspeto do filme "Bohemian Rhapsody", que esta semana chegou com grande pompa aos cinemas nacionais, em que todos os críticos parecem concordar: a incrível performance do ator Rami Malek é o triunfo inequívoco do filme. Diz a popular revista US Weekley: "Não é apenas fantasia. Com pleno entusiasmo e alma, o ator oferece uma das performances mais marcantes do ano. E ele, sozinho, transforma o boémio filme numa fascinante peça de estudo da personagem". Diz o Screen Daily: "Os Queen não teriam sido nada sem a presença sexy e atraente de Mercury, e "Bohemian Rhapsody" é dominado pelo desempenho magnético, fogoso e inesperado de Rami Malek na pele do vocalista".
Mas se, genericamente, os críticos adoraram a performance de Malek (o ator é conhecido pela sombria personagem de Elliot Alderson, o instável anti-herói da ótima série distópica de TV "Mr. Robot", papel diametralmente oposto à exuberância de vestir a pele do cantor dos Queen), por que razão não adoram o filme? Porque lhe faltará "verdade", sobretudo a verdade aberta sobre a explícita homossexualidade de Freddie Mercury, que morreu em 1991, aos 45 anos, após ter contraído o vírus HIV.
A produção do filme foi complicada: anunciado em 2010, "Bohemian Rhapsody" só chegou às salas oito anos depois. Pelo meio várias pessoas foram despedidas, incluindo o ator principal Sacha Baron Cohen, o ator que se lhe seguiu, Ben Whishaw, vários argumentistas e até mesmo o realizador Bryan Singer, que foi substituído por Dexter Fletcher, apesar de ser o nome de Singer, autor de "Os suspeitos do costume", que surge no cartaz. Mas as complicações e perturbações não explicam o rotundo falhanço na procura da verdade.
A versão "normalizadora"
"Bohemian Rhapsody", classificado para maiores de 12 anos, não está exatamente interessado na verdade mas sim na manutenção das aparências permanentes do espetáculo que possa ser consumido por toda a família, significando isso que optou por uma versão "sanitária" ou "normalizadora" da verdade - o que é particularmente lesivo no tratamento da sexualidade de Freddie Mercury.
É o que diz a exigente revista americana Variety: "Apesar do seu tema eletrizante, "Bohemian Rhapsody" é um filme biográfico convencional que passa pelos acontecimentos em vez de se afundar neles. E trata a vida pessoal de Freddie - a sua identidade sexual romântica, a sua solidão, as suas aventuras irresponsáveis em clubes masculinos gay - com reticências infantis, de modo que, mesmo que o filme não conte mentiras importantes, sente-se que não toca totalmente na história real". E a história real era esta: "Freddie Mercury era um homem descaradamente sexual que se sentia obrigado a manter sua sexualidade escondida, mas isso não é desculpa para um filme sobre ele ser tão dolorosamente "educado"".
O mesmo tom é recitado no jornal de referência inglês The Guardian: "A representação da sexualidade de Freddie Mercury é preocupante. É um filme que parece ver uma tragédia no facto de Mercury ser gay: a homossexualidade faz dele um solitário, incapaz de partilhar a felicidade doméstica dos seus companheiros de banda, que se estabelecem no casamento e na paternidade. Isso impulsiona um afastamento entre a banda e o seu vocalista, cujas ideias para músicas e estilos são cada vez mais baseadas nas suas experiências em clubes gay e vistas como antitéticas ao espírito do grupo". E mais: "O filme também parece colar a Mercury um gosto pelo hedonismo que o torna pouco confiável e até pouco profissional. De acordo com o filme, os outros membros dos Queen parecem ter passado o final dos anos 70 e 80 a revirar os olhos sobre o comportamento de Mercury, que se metia em bacanais dementes".
Mas isso não fez abrandar Mercury: em 1980, ele vestia-se exatamente como um homem típico dos clubs gay que frequentava: musculado, de bigode, sempre metido em calças e t-shirts justíssimas. Estará aí a explicação para o sucesso que teve na América, considerado apenas "moderado" enquanto Mercury foi vivo - a venda dos discos dos Queen explodiu literalmente após a sua morte: mais de metade dos LP vendidos nos EUA, quase 40 milhões, só ocorreu depois de 1991. O The Guardian conta um episódio revelador: "Na altura da edição do disco 'The game' (1980), os fãs dos Queen lançavam lâminas de barbear para o palco numa aparente tentativa de fazer com que Mercury cortasse o bigode e parecesse menos gay. À revista Rolling Stone, o baixista John Deacon admitiu que Mercury estava a alienar o público norte-americano, que tradicionalmente era espinhoso quanto à homossexualidade. "Alguns de nós odiávamos", disse Deacon em 1981, "mas ele era assim e ninguém podia pará-lo".
Uma visão inclinada
Freddie Mercury, cidadão inglês nascido no Sultanato de Zanzibar (foi um protetorado inglês de 1856 até 1964; o território é hoje a atual Tanzânia), de raça Parsi e criado como indiano, era um homem gay que, embora nunca se tivesse assumido publicamente, colocou a sexualidade em primeiro plano nas suas performances e criações. E fez tudo isso, aparentemente, sem que o seu público (um fã clássico dos Queen gostará de rock másculo como o dos Deep Purple ou Led Zeppelin) percebesse o que ele estava de facto a fazer.
Este tratamento "conservador" (para dizer o mínimo) da sexualidade do cantor é lesivo para outros aspetos da sua veia criativa e do seu verdadeiro legado artístico. No filme não há referências à impagável dívida que os Queen efetivamente têm relativamente à "estranheza" de Freddie, que deu tudo à banda, desde o nome ao som operático até à sua poderosa imagem planetária.
"Quando se pensa nos Queen", como também aponta o crítico do The Guardian, "pensa-se em Freddie Mercury integralmente vestido de couro ou com collants de bailarino, ou quase nu de micro-calções, abrindo caminho através de "Killer Queen" pelo Top of the Pops acima. Não há, no filme, qualquer menção ao impacto que Mercury teve na performance e hiper popularidade dos Queen".
Exploração do passado é contínua
Com 14 álbuns originais editados entre 1973 e 1991, o período de vida artística de Freddie, e o póstumo "Made in heaven", lançado quatro anos após a sua morte, com faixas de voz que o cantor gravou antes de morrer, os Queen continuam ativos na atualidade, mas, para muitos fãs, a banda deveria ter-se extinguido com a saída de cena do seu vocalista. Isso não aconteceu: os Queen são uma marca tremendamente rentável que continua a espremer o seu passado -já lançaram dez discos ao vivo, 15 (!) álbuns de compilações e 17 (!!) caixas especiais comemorativas, além de que continuam a dar concertos com vocalistas emprestados (Adam Lambert ou Paul Rodgers) que imitam como podem a voz de Mercury.
Para lá do imenso sucesso comercial da exploração da memória dos fãs, a banda deveria ter acabado, ou ter-se honestamente reformulado noutro projeto com outro nome, porque a voz de Mercury, que é o ADN da identidade dos Queen, é inimitável. É um tipo de voz muito peculiar que se encontra especialmente no canto operático dos séculos XVIII e XIX, capaz de corridas, trinados e saltos largos de virtuoso. Embora a voz falada de Mercury se encaixe na faixa de barítono, ele produziu a maioria das suas músicas no intervalo dos tenores. O seu alcance vocal era quase infinito, estendendos-e dos graves baixos até aos sopranos altos. O biógrafo David Bret descreveu-a como sendo uma voz que "escala dentro de alguns compassos de um rosnado profundo e gutural até subir à do tenor vibrante, com coloratura pura, cristalina, perfeita". Num segundo, ele atravessava quatro oitavas em vibratos rápidos e sub-harmonias perfeitas. Eis um pormenor que escapa ao filme: quando nasceu, Freddie sofria de hiperdontia, tinha dois dentes supranumerários, dois a mais, no caso os dois incisivos frontais que lhe davam uma "dentição de coelho", mas que marcaram de forma concisa o seu ritmo e maneira de cantar.
Um final em delírio
Sem querer fazer "spoiler" sobre o final do filme, mas fazendo, a forma como "Bohemian Rhapsody" termina deixa muitos fãs de boca aberta, numa sequência final delirante que sugere que Mercury encontrou o "verdadeiro amor" junto de Mary Austin, quase ignorando outro relacionamento de longo prazo: com o cabeleireiro Jim Hutton (1949-2010). Hutton, que era seropositivo, viveu com Mercury durante os últimos seis anos da sua vida, cuidou dele durante a doença e era ele que estava à sua cabeceira, juntamente com Dave Clark, quando morreu em Londres em 24 de novembro de 1991. Hutton diria mais tarde que Mercury morreu usando a aliança de noivado que ele lhe tinha oferecido.
Mary Austin não foi o seu amor carnal, foi a sua melhor amiga. "O único amigo que tenho é a Mary e não quero mais ninguém", disse Freddie Mercury certa vez. "Para mim, ela era minha esposa de direito comum. Para mim, foi como um casamento, acreditamos um no outro". Certo é que Mary Austin, a quem Freddie dedicou a música "Love of my life", herdou a sumptuosa casa georgiana de 28 quartos que o cantor tinha em Kensington e Hutton apenas teve direito a meio milhão de libras no testamento. Foi também a Mary Austin que foram entregues as cinzas do corpo cremado de Freddy Mercury. Mary enterrou-as num local não revelado. Acredita-se que o paradeiro das cinzas mortais do artista só seja conhecido por Mary, que afirmou que nunca revelará onde as enterrou.