Como é que Bon Iver faz aquilo é um mistério, mas o bardo cyborg raptou-nos para sempre o coração: foi o melhor do Nos Primavera Sound.
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Não haverá volta a dar, é o achado da unanimidade: as dores da frustração, da incerteza e do coração de Bon Iver apoderaram-se, como num rapto sentimental, de todo o cartaz do Nos Primavera Sound Porto 2017. São as suas deflagrações indie folk, lentas e difíceis, estranhas e experimentais, sim, e quase sempre metidas na meia-luz, mas capazes de injectar como nenhum outro emoção, que ficaram, e ficarão, a gravitar para sempre na memória de todos nós.
Quase erudito na escolha da sua setlist, tenaz, foi mais ou menos de três em três canções esparsas de "22, a million", o extraordinário terceiro álbum, que Justin Vernon, o Bon Iver, nos deu os hits de derreter o coração: "33 GOD", "Perth", "Minnesota", "Holocene".
É desajeitado e amoroso, Justin Vernon - disse que estava apaixonado pelo Porto, disse que nós somos lindos, disse que este é o melhor recinto rock que conhece, disse que o único problema é não morar cá -, mas é um artista difícil: proibiu as fotografias e os vídeos e todas as imagens e enfiou-nos, a nós e à encosta (é oficial: o 2.º dia foi o mais afluente de sempre: 30 mil pessoas) numa penumbra que só a espaços se deixava alumiar.
"22, a million" é, musicalmente, um disco bastante distante de "For Emma, forever ago", a coleção de melodias folclóricas doridas que Vernon estreou com pasmo e estrondo em 2007, limpando o seu novo som dos estrangulamentos acústicos, substituindo-os por suspiros eletrónicos nascidos da Messina, uma combinação maquinal do software Prismizer com algum hardware alienígena que foi inventado pelo próprio Vernon, o bardo da voz transformada em cyborg.
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E aquele final roubou-nos o coração
Como numa ardidura lenta de crepitações carregadas que só a espaços deixava entrar o ar, o final do seu concerto, com três canções, foi excepcional e já mora para sempre na memória do futuro.
Primeiro ele enganou-se a entrar na "45" e admitiu que estava a desafinar. Riu-se, houve palmas, assobios de louvor, e ele entra outra vez. Depois ataca "Holocene", uma sublime canção de perdição em que ele solta os seus famosos agudos a balir e se confronta com o desterro e o deserto emocional ("e eu soube imediatamente que não era magnífico, extraviado no corredor da autoestrada, e pude ver por milhas, milhas, milhas") e fecha o concerto, de joelhos, agarrado à guitarra a chispar, coroado de brancura e detonações de luz.
Mas depois, já o público subia a encosta satisfeito e dado como terminado, era quase meia-noite, e sucedeu o impensável: houve um encore que não estava previsto, nem sequer se pressentia. O ecrã gigante atrás de Justin mancha-se de vermelho, ele senta-se à guitarra com o percussionista por trás, parecia que estávamos todos à roda do seu fogo a acampar, e ele entrega-nos uma canção de arrepiar, "Skinny love", o diamante de "For Emma", o do amor que o estilhaçou há dez anos mas que lhe deu um disco de perpetuidade, e todas as nossas vozes o cobriram e clamaram com ele aquele interminável "my, my, my". Não é exagero: estivemos lá e trememos, está aqui um dos melhores concertos de sempre de seis anos de Primavera Sound.
Um triângulo cheio de rock por dentro
Num cartaz totalmente dominado pelos homens - é uma equação desequilibrada: 41 bandas governadas por varões, só sete atos administrados por mulheres -, foi ao segundo dia que o másculo músculo do rock se elevou com todo o vigor, com o best of do 2.º dia a fechar-se num triângulo de ferro e fogo: Swans (o mais longo set do festival, duas horas a dissecar uma ópera de rock), Pond (space rock floral) e Sleaford Mods (é punk-rap nu e cru e muito comicial, capaz de nos sugar para outro planeta onde o ar rareia e só sobrevive a confrontação, a politica e o impropério; "fuck of, England!", disparava Jameson Williamson em desatino repetido, a queixar-se do resultado do Brexit e das eleições).
Esse triângulo cresceu depois para um quadrado (apareceu de rompante, como um ácico, progressivo, o psychedelic rock de King Gizzard & The LIzard Wizard) e mais tarde transmutou-se ainda num pentágono porque a tenda Pitchfork encheu e abarrotou com o indie rock quase emo dos Cymbals Eat Guitars. Num ano em que há mais R&B e mais soul no Primavera, quem veio ao rock saiu daqui de coração atestado - ou esfrangalhado, dependerá do peito de cada um.
A "golden hour" é a melhor hora
Talvez a explicação seja do espaço e do tempo: encosta do Palco Super Bock, luzerna de fim de tarde, "quando os olhos se cerram de desejo e a noite de manso se avizinha", mas a essas horas, ali, com o público espraiado e brando ao sol, aconteceram pequenos momentos de magia.
No primeiro dia foi Scott Matthew, sozinho à guitarra a entoar o "Smile" de Charles Chaplin, a canção que quer dar um remédio aos males do mundo, com o público no relvado todo a sorrir.
Ao segundo dia foi Whitney, no mesmo sítio, à mesma hora da luz coada, estava a banda de Chicago entregue a remar o "Golden days" quando
Julien Erhlich, o baterista cantor que saiu da Unknown Mortal Orchestra, salta do seu sítio para beijar Max Kakacek, e no ar ficam a ecoar as linhas da canção da dissolução do amor, "eu caí diretamente quando tu desististe de mim, aqueles dias dourados fugiram para sempre de nós".
O trono da Elza
Ao terceiro dia, o palco e a hora foram sequestrados por Elza Soares e pelo seu trono de MPB, Elza tem 79 anos, é um monumento andante do Brasil, ela haveria de rasgar todo o romantismo ("Cê vais se arrepender de levantar a mão para mim"), para nos mostrar "o peito em chamas, o corpo com a lava a escorrer" no seu super-êxito que lateja "Prá fuder" - e aí toda a pista relvada e mais a encosta apinhada de povo do Palco Super Bock levantou a voz para bradar o berro com ela.
Algum do melhor Primavera Sound de 2017 deflagrou justamente à "golden hour", quando o dia se comuta pela noite, a confundir sentidos, incluindo no Palco Nos, com Miguel - que belo e sanguíneo performer é Miguel, é maior do que as montanhas o seu pulmão, ou então encarnou, sem o sabermos, no fantasma vivo de Clinton, o George, o louco arquiteto capilar do p-funk - e incluindo, claro, Angel Olsen, a encantadora cantora que sorri à nossa frente a despedaçar-se em vulnerabilidades e confissões do amor que se deteriorou, "o céu atinge-me de cada vez que vejo a tua cara, fico cega, fico sempre, meu amor".