Um dos grandes filmes da última temporada do cinema francês, “A História de Souleymane”, acompanha o quotidiano de um jovem guineense sem papéis, que faz entregas nas ruas de Paris enquanto procura uma maneira de pedir asilo.
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Não é a primeira vez que faz um filme com a emigração como tema central.
A emigração é para mim uma velha questão. Fiz o meu primeiro filme há dez anos, “Hope”, que passou na Semana da Crítica de Cannes, e era já um filme que falava da emigração. Ou melhor, que nos colocava na pele de um emigrante. Que nos punha do outro lado, o que é muito diferente de fazer um filme sobre emigração, onde as personagens principais são francesas ou europeias.
Qual era a história desse filme?
O filme contava a história de dois africanos, um camaronês e uma nigeriana e terminava quando finalmente tinham à frente deles as luzes de Espanha. Nos debates sobre o filme muita gente me perguntava porque não mostrava a continuação da história, o que se passava quando eles chegavam ao pé de “nós”. Mas, para dizer a verdade, não tinha vontade de o fazer.
Porque não sentia essa vontade, essa necessidade?
Fiz todos os meus filmes longe. O que me seduz é partir para longe e fazer com que um filme seja também uma grande aventura para mim. Fazer um filme em Paris, ao pé de minha casa, não me entusiasmava. E não é só partir para longe, de cada vez há uma descoberta muito forte, entrar num outro lugar e compreendê-lo.
Quando sentiu essa vontade de mudar de registo?
Resisti muito, apesar de no início de 2020 já estar a fazer alguma pesquisa, mas depois aconteceu o confinamento. De repente as ruas de Paris ficaram vazias. Quem andava pelas ruas de Paris? Os homens das entregas. Todos africanos e, como percebi rapidamente, quase todos sem papéis. Dei-me conta de que era um tema fascinante.
O filme fala também da economia dos nossos dias.
Precisamente, fala da emigração, mas também da economia “uberizada”, de uma nova economia. E esta personagem de um homem que faz entregas de bicicleta era um tema fascinante. Era excitante segui-lo de bicicleta pelas ruas de Paris, estar sempre em movimento. Logo a seguir ao confinamento comecei a fazer pesquisa, para perceber como é que funcionava este negócio das entregas.
A alguém como o Boris apetece perguntar se pensa que o cinema pode mudar o mundo.
É preciso ser modesto e ter os pés bem assentes na terra. Não vou dizer que um filme vá mudar o mundo. Mas o filme propõe uma experiência ao espetador e creio, pelas experiências que tenho tido, que é uma experiência forte. A experiência que propomos é simples: passar dois dias na pele de Souleymane. Não é uma experiência intelectual, mas física. Sentimos de uma forma física o que é ser Souleymane, em cima da sua bicicleta, nesta cidade e desta forma.
Há um trabalho notável ao nível da imagem e do som, para que isso aconteça.
O filme tenta ser imersivo, ao nível da imagem e também dos sons da cidade. Quisemos dar uma sensação forte do que é esta cidade. No fundo, depois de ser dois dias Souleymane, o que é que o espetador sente? Sei que tem sido uma experiência forte, mas tenho de ser modesto. Não sou um Deus que, de repente, aparece aos pobres pecadores, que se convertem. Mas dizem-me que, quando a luz da sala se acende, há um silêncio que se vê raras vezes no cinema. As pessoas quase não ousam respirar.
Mas o filme não aposta nada no efeito melodramático.
O filme deixa as pessoas com uma sensação muito particular. Nada a ver com a forma como por vezes se faz chorar o espetador. É uma sensação que o deixa com muitas perguntas. E acho que isso muda um pouco o olhar das pessoas. Há quem me diga que, agora, vê esses homens das entregas na rua, ou que fala com eles quando lhes batem à porta. Quem sou eu para lutar contra Trump. Não sei se o cinema pode mudar o mundo, mas pode mudar a perceção das pessoas, que elas sim, podem salvar o mundo.
O que pensa da subida generalizada da extrema-direita no mundo?
Não sou um analista político. O meu trabalho é contar histórias, fazer filmes. É aterrador o que se passa com a subida da extrema-direita. Estamos num momento de mudança civilizacional. Há uma batalha cultural a fazer. Em França, o que as pessoas da extrema-direita dizem é que durante meio século a esquerda e a extrema-esquerda dominaram a cultura. Quando a direita e a extrema-direita querem conquistar esse terreno, há uma batalha cultural a empreender. Vamos a isso.
O final do filme, com a entrevista à funcionária, é impressionante.
Demorei algum tempo a colocar essa cena no guião. Já não estamos no domínio do documentário, de uma entrevista normal. Não quer dizer que não possa acontecer. Mas não é a norma neste tipo de entrevistas. Normalmente as pessoas contam as suas histórias inventadas, o funcionário agradece, manda-os embora e depois vão dizer que não e acabou.
O que o levou a mudar essa cena?
Aqui passa-se qualquer coisa de particular, mas que pode acontecer. Aquela funcionária está farta de ouvir pessoas que lhe mentem. Aqueles funcionários são muito jovens e fazem aquele trabalho durante três anos. Depois vão fazer outra coisa. É muito duro, é impossível fazer aquele trabalho durante muito tempo. É de ficar louco, quer com histórias verdadeiras mas atrozes que lhes contam, quer pelas mentiras permanentes e parecidas que lhes dizem. É um trabalho horrível. No filme, ela abre-lhe essa porta.
E ela abre-lhe aquela porta…
Era importante que, quando o Souleymane lhe conta a história verdadeira, o Sangaré também contasse a sua história verdadeira. Por isso, desde o nosso primeiro encontro que quis saber qual era a sua história. Foi também uma maneira de o conhecer, de saber quem ele era, de onde vinha. E senti que era interessante colocar no filme um pouco do que ele próprio era. Quando a história verdadeira aparece é como uma epifania de uma verdade indiscutível. Não podia vir de um trabalho de ator, é uma verdade que salta do ecrã.
Como se filma assim nas ruas de Paris?
Houve muita preparação, mas o que deu esta sensação de verdade é que não bloqueámos as ruas e deixamos as pessoas entrar na imagem. Entrámos com a bicicleta do Souleymane na circulação. É toda essa confusão que dá essa sensação de verdade. A mesma coisa com o metro.
Como é que filmaram essas cenas do metro?
Quiseram que alugássemos uma carruagem na estação terminal e trouxéssemos os nossos figurantes. Nem pensar, eu queria filmar em Barbés e que as pessoas entrassem e saíssem do metro. Queria que a porta se fechasse no último momento em que ele salta para o metro. Filmámos várias vezes, não foi fácil, o Abou tinha de entrar, sair na estação seguinte e voltar para trás. Mas acabámos por usar uma cena mais errática, mas foi a bizarria desse movimento que deu essa sensação de verdade.