"Senhoras e Senhores, deem as boas-vindas aos Rolling Stones", ouviu-se no Parque da Bela Vista, em Lisboa, pouco passava das 23h50. Estava dado o mote para duas horas de uma atuação memorável, com um Mick Jagger exuberante e imbatível, uma banda que conserva os dotes de outrora e um dueto inesperado com Bruce Springsteen.
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Foram 19 canções em quase duas horas de suprema lição rock perante as mais de 86 mil pessoas que encheram o Parque da Bela Vista. Era mesmo muita gente. No lado direito do palco até havia pessoal a trepar às árvores, tudo a lutar por um local com visibilidade para o palco onde surgia a banda mais desejada e respeitada do planeta. E testemunharam uma estupenda lição de rock a atravessar os olhos, os ouvidos e o corpo inteiro. Mick Jagger surgiu solto naquela espantosa desenvoltura.
Agitou o corpo, oscilou as ancas, sacudiu as pernas num titilar, ondulou os braços num tremular galante. E com aquela imensa boca começou assim: "Eu nasci num furacão em fogo cruzado". "Jumpin" Jack Flash" abriu uma sessão que, sem demoras, passou por "It's only rock'n'roll (but I like it)" e "Live with me". A primeira surpresa surgiu com a presença de Bruce Springsteen em "Tumbling Dice". O norte-americano está em Lisboa, assim como Bill Clinton, que também assistiu - e delirou, como toda a gente - com o concerto.
Também é isto que os Rolling Stones conseguem: agradar a novos, velhos, ricos e pobres. Ninguém no seu perfeito juízo fica indiferente a uma versão de quase 12 minutos de "Midnight Rambler", uma magnífica viagem de blues tripante em improviso com Mick Taylor (antigo guitarrista da banda) pelo meio. Ainda houve "Miss you", "Gimme Shelter", "Start me up", "Sympathy for the devil" ou "Brown Sugar" com Jagger em investidas por uma passadeira que se estendia pelo público.
Ainda que de perto se vejam as rugas de septuagenário, o homem continua com uma vivacidade impressionante. Ninguém diria que ali vai um velhote - o tipo continua sexy, triunfante, a desencadear um arrebatamento de tal monta que ninguém arreda pé.
A banda não tenta ludibriar a malta com espalhafatos desnecessários. Toca as canções com chama e paixão. Saiu triunfante depois de "You can't always get what you want" (com direito a coro) e, claro, "(I can't get no) Satisfaction".
Gary Clark Jr. abriu caminho para os Rolling Stones
Gary Clark Jr. já está habituado a abrir concertos para os Rolling Stones - partilhou o palco com eles várias vezes durante a tournée comemorativa dos 50 anos da banda - mas nada disso torna a tarefa de entusiasmar uma multidão de mais de 86 mil pessoas ansiosas por ver as estrelas da noite numa tarefa fácil.
Depois de se estrear nos palcos portugueses o ano passado, no Super Bock Super Rock, Gary Clark Jr. regressou com as canções do seu "Blak and Blu" (2012), oferecendo os seus dotes na guitarra e a poderosa voz soul em canções como "Next door neighbor" ou "Ain't messin around", num início morno que foi ganhando fôlego à medida que surgiam "Please come home", "Don't owe you a thang" ou "Numb". Parco em palavras, não se poupa no dedilhar preciso da guitarra, em músicas que oscilam entre o blues, country e rock.
"Bright lights" foi deixada para o final, mas foi quando as luzes do palco se apagaram que se começou a sentir um frenesim mais intenso pelo Parque da Bela Vista, em contagem decrescente para receber os Rolling Stones.
Xutos deram o pontapé para noite de rock
Antes, os veteranos Xutos e Pontapés lançaram a semente do rock no Parque da Bela Vista, em Lisboa.
A celebrar 35 anos de carreira, os Xutos e Pontapés voltaram ao Palco Mundo do Rock in Rio Lisboa para apresentar algumas canções do novo disco, "Puro", editado em janeiro deste ano, e deleitar os fãs com os êxitos de outros tempos. A banda de Tim, Zé Pedro, Kalu e João Cabeleira arrancou com três canções do novo trabalho - "Tu também", "Salve-se quem puder" e "Tu&Eu (de madrugada) -, mas foram os primeiros acordes de "Contentores" que deixaram o público eufórico.
Em frente ao palco principal, um mar de gente - de várias gerações - trauteava as letras mais conhecidas, de braços no ar, não se deixando abater pela chuva miudinha que caía. "Ai se ele cai" encantou os mais novos, mas foram os clássicos "Dia de S. Receber", "Homem do leme" e "Chuva dissolvente" que fizeram com que as cerca de 86 mil pessoas que já se encontravam no recinto se voltassem a render aos ícones do rock português.
"Maria", "Casinha" e "Circo de Feras" foram deixadas para o final, coroando um espetáculo a que a maioria dos portugueses já assistiu mas continua a ver com igual entusiasmo.
Portugal, Brasil e África
Rui Veloso abriu o palco num concerto com o brasileiro Lenine e a cantora do Benim Angélique Kidjo. O início foi um bocejo mas ganhou encanto quanto a cantora africana subiu ao palco para uma versão gospel de "Redemption song", de Bob Marley.
"A Paixão", velha conhecida do público, foi cantada por Lenine e Veloso, e "Sodade", de Cesária Évora, voltou a alinhar os três músicos em palco. Entre a multidão, ondulavam bandeiras de Portugal, Angola, Brasil, Espanha e Argentina, cenário perfeito para Angélique Kidjo pedir a união de todos os povos e lançar-se a "Africa" - "somos todos africanos".
Apesar de ainda faltarem várias horas para os Rolling Stones subirem ao palco, poucos eram os que se aventuravam para muito longe do Palco Mundo. O rock colorido dos norte-americanos Triptides reuniu poucas dezenas junto ao palco Vodafone, e a maior parte ouvia-os enquanto aguardava na fila para dar uma volta na roda gigante. Na Rock Street o ambiente estava mais animado. Entre comida, bebida e brindes, os brasileiros Terra Celta faziam o público saltitar ao som de uma mescla de música rock folk irlandesa.
Multidão à espera dos Rolling Stones
A abertura das portas, às 15 horas, foi um pagode: as primeiras duas ou três centenas de criaturas desataram numa correria desalmada pradaria abaixo para assegurarem um lugar lá frente, junto às grades - e isto para garantirem uma visão privilegiada para as estrelas que só surgiriam quase nove horas depois. Até houve um que atravessou o terreno montado em duas muletas, a arfar, veloz como uma avestruz, sem tombar.
A fauna presente era diferente daquela que compareceu no domingo. Ontem sentia-se a deleitável vibração da militância ao rock. O logótipo dos lábios e da língua estava estampado em milhares de peitos. As filas para as bugigangas eram menores - o povo foi pela música.
Debaixo de um céu prateado - um tapete de nuvens stratocumulus ameaçou chuva mansa - abundavam fãs de várias gerações. Com 18 anos, o Rui Pedro, de Lousada, baldou-se às aulas com o aval do pai - que também foi - e permaneceu o tempo todo abraçado à grade para avistar Keith Richards a poucos metros. "Fascina-me aquele som característico, ele descobriu um caminho para a guitarra que não estava muito palpável", disse-nos. "É uma inspiração", rematou. Poucos metros ao lado, Joaquim Santos, de 49 anos, veio da Amadora com a companheira a apresentá-lo como "o fã nº2 dos Stones".
"Ele sabe tudo, até a cor das cuecas deles", troçou a mulher. "Só o Papa é que chama mais gente que o Jagger", comentou Joaquim.
Há quem fomente devoção ainda maior. O JN encontrou dois belgas cinquentões que vieram de propósito para o concerto. Um deles, Philipe Lejeune, artista plástico de 55 anos, já viu 48 concertos dos Rolling Stones e diz ter "mais de mil discos" da banda. "Quando eles começam uma digressão, tentamos segui-los e ver todos os concertos", explica-nos Michel Fuillien, de 52 anos. Têm muitas histórias para contar e confessam que adoram a sensação da ansiedade antes de cada concerto. "Sabemos que um dia isto acabará mas tentamos não pensar nisso".