
"Cadernos da água" é o primeiro livro de João Reis no catálogo da Quetzal
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João Reis constrói no seu novo romance, "Cadernos da água", um cenário aparentemente apocalíptico sobre o futuro do planeta, mas que, afinal, não está assim tão distante da realidade atual.
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De livro para livro, João Reis (Vila Nova de Gaia, 1985) tem vindo a demonstrar uma versatilidade temática e estilística não muito frequente num meio, como o literário, onde bastas vezes se confunde a construção de uma voz pessoal própria com a escrita incessante da mesma obra.
Muito distintos entre si - oscilando entre a vertigem de "A noiva do tradutor", a ironia contida de "A devastação do silêncio" e a paródia de "Quando servi Gil Vicente" -, os seus romances convergem no ceticismo inato, ou seja, na convicção de que a espécie humana está toldada pelo Mal e que os resquícios de humanidade são exceções que confirmam a regra.
Com "Cadernos d água", Reis prossegue a desejada diversidade, ao mesmo tempo que eleva a visão sombria sobre os homens a um novo patamar. Para tal, ambienta a narrativa num futuro (mais próximo do que gostaríamos) no qual a luta pela sobrevivência adquire contornos impensáveis.
A escassez abrupta de água e a aceleração das alterações climáticas vieram mergulhar a Humanidade numa crise profunda. Ao rápido esboroar das nações - cujos títeres, perdão, líderes, foram substituídos por movimentos de guerrilha ainda mais corruptos do que os anteriores governantes - segue-se a criação de campos de refugiados (eufemisticamente chamados de centros de acolhimento), onde multidões são mantidas sem dignidade e, ainda mais grave, destituídas de qualquer esperança.
É a partir desses purgatórios terrestres que a protagonista anota num diário as impressões de um quotidiano calcificado tanto pelas insuportáveis temperaturas como pelo avolumar de sucessivas injustiças.
A conhecida divisa orwelliana segundo a qual "todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros" encontra um equivalente nesta história, sob a forma de personagens que não tardam a querer tirar partido da absoluta miséria em que vivem os seus semelhantes.
Escrito como uma distopia, "Cadernos da água" apresenta face à realidade presente - marcada pela pandemia, guerra e esgotamento dos recursos naturais - demasiadas semelhanças para ser considerado uma mera efabulação literária. É, todavia, no apelo implícito à ação, como forma de escapar a um futuro terrível, que devemos centrar os nossos esforços de leitura. A bem da sanidade mental.
