Gaya de Medeiros apresentou esta sexta-feira à noite, no Auditório municipal de Gaia, "Cafézinho", a partir do mítico "Café Müller" de Pina Bausch. O espetáculo faz parte do Festival Dias da Dança (DDD).
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Há lugares que vivem da memória e outros que a inventam. Quando Pina Bausch estreou "Café Müller" em 1978, criou um espaço povoado de ausências, onde as cadeiras e as paredes pareciam guardar o peso de todos os encontros e desencontros que a dança já não podia traduzir em palavras. Em "Cafézinho", Gaya de Medeiros revisita, conscientemente ou não, essa geografia de afetos e vulnerabilidades, mas desloca-a para um outro território: o da construção identitária contemporânea e coletiva.
Em "Café Müller", os corpos movem-se como sonâmbulos, cegos, tropeçando no mobiliário como quem procura, na escuridão, um último gesto de pertença. A fragilidade é matéria da composição: os intérpretes lançam-se às paredes, apoiam-se uns nos outros num jogo desesperado de sustentação e queda. A repetição dos gestos cria uma sensação de inevitabilidade, de círculo fechado. É um trabalho onde a dor e a beleza não se distinguem coexistem.
Já em "Cafézinho", Gaya de Medeiros propõe outro tipo de resistência: a construção de uma comunidade possível com as pessoas mais pessimistas que conhece. Partindo de uma encenação íntima,conversas, presenças múltiplas, a coreógrafa convoca um espaço onde a identidade se afirma pela partilha. A cena é habitada por corpos que falam de si, que dançam não para resistir à queda, mas para celebrar a permanência. Se em Bausch o café é um lugar fantasmagórico, em Medeiros ele é vibrante, vivo, uma pequena utopia construída a partir das margens. E com a música "Canta, canta minha gente" de Martinho da Vila como um paradoxo.
Formalmente, os dois trabalhos dialogam pela aparente simplicidade da cenografia e pela importância da relação entre corpo e objeto. Mas enquanto Bausch trabalha a repetição como inscrição da perda, Medeiros explora a diferença como motor de sobrevivência e reinvenção. Em "Cafézinho", o café é também um espaço político, onde se celebram identidades dissidentes, em gestos quotidianos tornados resistência.
A música desempenha papéis distintos: em "Café Müller", é elemento atmosférico, ampliando a melancolia e a sensação de vazio. Em "Cafézinho", a música é suporte e celebração, conectando os intérpretes numa rede de afetos visíveis. Também a fisicalidade é distinta: onde Bausch aposta num movimento quebrado, dolorido, Gaya escolhe a fluidez e a celebração dos corpos em trânsito.
Embora separados por décadas e contextos históricos tão diferentes, ambos apontam para a vulnerabilidade como matéria do gesto coreográfico. Mas se Pina Bausch expunha a solidão inevitável da condição humana, Gaya de Medeiros propõe uma resposta contemporânea, a possibilidade de, juntos, reinventarmos a ideia de casa.
Num tempo em que a distância se tornou norma, "Cafézinho" surge como um gesto de contraposição à desesperança. No espaço aberto entre uma cadeira e outra, onde Bausch via o abismo, Medeiros vê a ponte.