No dia em que se assinalam os 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco, o escritor e editor Francisco José Viegas realça a genialidade de um autor que "nunca quis ser moderno".
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"Se a geração dos anos 70 e 80 tivesse lido Camilo talvez se escrevesse bem melhor". Quem o diz é Francisco José Viegas, autor que enaltece a sua "imaginação prodigiosa" e a rara capacidade de convocar para os seus livros a vida em bruto,
Em que sentido ler Camilo Castelo Branco hoje continua a ser essencial?
Camilo não é importante hoje; foi sempre importante. Foi no seu tempo e continua sê-lo. Se a geração dos anos 70 e 80 (a de hoje nem sem fala) tivesse lido Camilo, não teríamos agora um romance português tão depressivo, sentimental e pequeno-burguês, tão moralista. E talvez se escrevesse bem melhor.
Ao contrário do que acontece com os livros de Eça de Queiroz, a Camilo raramente se associam predicados como a “modernidade ou “atualidade”. É uma visão redutora da sua obra?
Redutora, é – mas não é falsa. É redutora porque, em literatura, “modernidade” e “atualidade” não são valores que garantam qualidade de uma obra. Camilo não pode ser considerado “moderno”. Ele é um autor daqueles anos loucos portuenses, dedicado a estudar e a transcrever a vida comum, a escrever sobre o que ouve e lê, sem se preocupar senão com “produzir um fruto incontestavelmente bom” (como diz num dos seus primeiros livros), uma história que comova os seus leitores – isto é o seu projeto. Nem Camilo quer ser moderno; ele próprio se declara “anacrónico” e fica feliz com isso. É uma arte, a de ser anacrónico, a de não ter de seguir as modas, nem ter de escrever mal. Quanto à “atualidade”, discordo: Camilo foi muito atual, mas o romance – ele diz isso no ‘Anátema’, o seu primeiro romance – anda vinte anos para trás em cada capítulo. Ele é genial.
O que podem os escritores de hoje “aprender” com Camilo e os seus livros?
Antes de mais, podem verificar a sua imaginação prodigiosa – e a sua conceção de romance, que não é a do cânone realista, muito certinha, muito de “princípio, meio & fim”. Em Camilo, as histórias avançam e retrocedem, as personagens mudam e perdem-se, ele dirige-se ao leitor como se dirige às próprias personagens, interrompe de repente um capítulo para falar de um assunto completamente diferente e o livro não perde coerência. “A Brasileira de Prazins” é um desses livros que tem quase tudo para sobreviver nas mãos de um escritor convencido de que é “moderno”. Quase tudo foi feito por Camilo. Ele inventou o romance como grande género. Por isso é que ‘A Brasileira de Prazins’ tem de tudo – história, amor, paisagem, riso, teologia, guerra, maus-fígados. Tudo.
Quais as dimensões de Camilo Castelo Branco a que faz questão de voltar ainda hoje?
Em primeiro lugar, a sua incoerência saborosa, maravilhosa. É inclassificável. De cada vez que alguém tenta enquadrá-lo e arrumá-lo numa estante, o Camilo escapa na prateleira seguinte. Gosto da forma como, mesmo nos romances mais “populares” e nas histórias mais cómicas, ele se mete com os literatos, os burgueses, os “modernos”, os modismos, as trangalhadanças. Depois, é um tipo com maus-fígados. Comove-se, sim, e brutalmente, mas tem humor e maus fígados, não é sentimental. Há ainda a sua ideia de romance – e a linguagem, que é prodigiosa. Farto-me de rir.