Autor de "Camões, vida e obra" destaca o espetro sentimental alargado que os textos do poeta convocam. "É um daqueles autores que tocam as cordas todas", reforça.
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Alfarrabista e crítico literário, Carlos Maria Bobone mergulhou a fundo na obra do poeta maior para escrever "Vida e obra", um livro que, não sendo uma biografia, como faz questão de esclarecer, procura oferecer uma panorâmica alargada sobre esta figura, "repassando as vidas do poeta, as especulações, as hipóteses, para separar o provado do provável e do improvável".
"O que precisamos não é propriamente de perceber Camões, é de perceber o mundo, e Camões ajuda-nos a fazê-lo", diz ao "Jornal de Notícias".
Com que estado(s) de espírito chegou ao final desta aproximação à vida e obra de Camões?
O bom de escrever sobre Camões é que Camões é um daqueles autores que tocam as cordas todas. Enquanto, ao ler muito intensamente Dostoievski, por exemplo, nos sentimos sempre puxados para uma gama de sentimentos e ideias muito específicos – uma angústia, um desespero, etc. – com Camões o estado de espírito vai variando muito. Glória, desesperança, maravilhamento, tudo isso nos atravessa quando lemos e estudamos Camões.
Escreve que ler Camões alarga o nosso conhecimento sobre autores do nosso tempo ou quase, como Pessoa ou Sena. Acha que a sua influência ainda se faz sentir hoje?
Sim, embora de maneiras complexas. Há uma influência que está relacionada com a língua, com o uso corrente de expressões camonianas, e até com uma invocação permanente da sua autoridade. Há, também, uma influência que não é bem camoniana mas que se apoia em Camões, que tem que ver com o uso de interpretações da sua obra para caracterizar certas particularidades portuguesas, por exemplo. Quanto à influência do texto, o uso da sua obra como objeto de estudo, ponto de partida para reflexões sobre o mundo ou sobre a arte, diria que sofreu o declínio que tem sofrido toda a literatura – e as chamadas “letras” em geral – com a agravante de se tratar de um autor formalmente difícil, associado a cânones e ideias muitas vezes considerados obsoletos e que por isso tem talvez menos atenção “real”, fora das invocações genéricas, que merece.
Defende também que, em função dos escassos conhecimentos objetivos sobre a sua vida, escrever uma biografia sobre este autor “é tão inútil como ilegítimo”. Isso não equivale a desistir do estudo da sua vida e obra?
Não, implica apenas que o modo de olhar para a sua vida tem de ser diferente do modo como olhamos para um escritor do nosso tempo. O que sabemos sobre Camões não chega para fazer uma verdadeira biografia e, mesmo nos aspectos conhecidos, não chega para fazer alguma coisa que ultrapasse o domínio da curiosidade inofensiva. É “engraçado” saber onde ou quando Camões nasceu, mas não é importante e não nos ajuda a perceber a sua obra. Ajuda-nos, contudo, a perceber a sua influência ver de que modo foi sendo interpretada a sua vida. Nesse sentido, fazer uma história das suas biografias, uma não-biografia, é fazer uma espécie de história da cultura do país, em que o modo como se vê Camões ajuda a perceber os modelos estéticos e políticos das várias épocas.
O que espera que as comemorações dos 500 anos tragam à compreensão da sua figura mas também do que escreveu?
As comemorações em si não me parece que tragam alguma coisa. O que pode acontecer é que entusiasmem leitores e investigadores para voltarem a olhar para Camões e, dessas leituras, surja alguma coisa importante. Não me parece, no entanto, que o que possa surgir ajude à compreensão da sua obra: pode é surgir alguma coisa que mostre como Camões nos ajuda a perceber o nosso mundo. O que precisamos não é propriamente de perceber Camões, é de perceber o mundo, e Camões ajuda-nos a fazê-lo.
O ensino tem tratado devidamente Camões?
Para dizer a verdade, não sei. Nunca dei aulas, os meus filhos não estão ainda em idade de estudar Camões, nunca fiz sequer estudos de literatura na faculdade, pelo que não sei. Sei que será sempre difícil tratar devidamente um poeta com esta dimensão, sobretudo quando carrega com ele, também, um peso histórico como o que tem Camões.