Já está nos cinemas o novo filme de Carlos Ruiz Carmona, "O Céu em Queda".
Corpo do artigo
Cineasta de origem espanhola, com formação em Inglaterra e há muito a viver e a filmar em Portugal, professor da Escola das Artes e fundador da portuense Fronteira Filmes, Carlos Ruiz Carmona continua a sua trajetória de experimentação com "O Céu em Queda", duelo entre Carla Chambel e Rúben Garcia, no papel de dois amantes que vivem uma paixão intensa e proibida. No seu preto e branco e na encenação radical dos rostos e dos corpos, o realizador discute a forma como a mulher é representada no cinema e homenageia o cinema clássico, ao mesmo tempo que nos envolve na história de Ana e de Luís. Estivemos a conversar sobre cinema com Carlos Ruiz Carmona.
Vendo o seu filme percebemos que há por lá muita cinefilia...
É um filme que parte de uma revisão de um cinema a preto e branco. Eu cresci com esse cinema, é uma referência enorme. Quando penso em cinema, penso mais a preto e branco que a cores. É algo de automático para mim. É a minha forma de olhar para o cinema. As construções da luz, o contraste, a dramaturgia.
Foto: Direitos Reservados
São identificáveis muitas referências, mas nunca como uma cópia...
Essa identidade parte muito de eu olhar para o cinema clássico com uma grande distância. E de começar a pensar o processo de representação do amor. De como o amor estava ligado à dor, à impossibilidade, ao sofrimento. Toda essa fantasmagoria de tradições, também literárias, tudo isso está presente e foi isso que me motivou a pensar como poderia fazer um filme que não fosse uma homenagem. A estética nasce desse diálogo com todas essas construções também literárias, e do teatro, que me influenciou muitíssimo.
Há muito de Bergman ou de Dreyer nessa reflexão.
O Dreyer também foi um autor que me marcou muito, pela frontalidade dos gestos, como ele põe em evidência o artifício, um artifício deliberado, mas também como trata o amor como um peso, como uma condenação. Em Dreyer o amor é cruel. Mas o Douglas Sirk é outro autor incontornável, é impossível falar de melodrama sem passar por ele.
Quando se fala de melodrama tem de se falar de música, outro elemento importante no seu filme.
Algo que marcou muito a estética do filme foi a música do Toru Takemitsu. Sou um grande admirador do trabalho dele. Foi algo que ouvia quando estava a escrever o filme. Os silêncios dramáticos, que amplificam o que não é dito. "A Way Alone" são duas partituras, uma de cordas, mais introvertida, outro mais sinfónica, mais expansiva. Às vezes até as sobreponho, para evocar esse conflito, entre contenção e libertação emocional, entre presente e passado.
E depois entra Wagner...
Wagner foi para mim algo de muito natural. Tem aquela dimensão do excesso do amor. Também há no cinema muito essa representação, de que o amor é maior do que a vida, não pode ser vivido, destrói-nos. Há também essa dimensão na literatura, no "Romeu e Julieta". O Wagner veio representar isso. Abre o filme e fecha o filme. Como as cortinas de um palco.
Ao ver o seu filme percebe-se bem a influência enorme que o Bernard Herrmann teve de Wagner ao fazer a partitura para o "Vertigo", do Hitchcock.
Conheço muito bem o Bernard Herrmann, é um autor de que gosto muito. Já o utilizei num outro filme, uma reflexão sobre a Europa, embora tenha sido muito criticado, por ser um autor americano. Ele é claramente influenciado por Wagner e por outros compositores clássicos. Conseguiu algo de mágico, criar algo de novo, mas claramente influenciado por toda uma tradição musical.
Cartaz do filme. Foto: Direitos Reservados
Já falou da representação da mulher no cinema, algo de que os estudos cinematográficos têm discutido muito, com o conceito do "male gaze"..
O filme é uma síntese de experiências e de histórias. Essas personagens não são reais, são arquétipos, são figuras de uma mitologia íntima. No fundo, estou a tentar evocar um passado que está presente, como uma sombra, alo que ainda está lá, uma ideia que ainda nos influencia na forma como olhamos para o amor. Uma mulher que seria mais frágil, mais submissa, menos dominante. E o homem que seria mais galante.
Como é que deu a volta a esse olhar dominante?
Se estudarmos a história do cinema os homens são sempre muito mais altos, o que se nota muito quando há um beijo final. Mas o Ruben Garcia também tem muitas características femininas, vai demonstrando ao longo do filme algumas fragilidades. Isso ajuda a questionar, a interrogar a construção cultural do masculino e do feminino. Não me consigo desviar por completo, mas vou introduzindo cenas no filme onde troco os papéis, mudo a composição, o posicionamento da mulher e do homem.
Como convenceu a Carla Chambel e o Ruben Garcia a embarcar nesta viagem, cheia de desafios?
Foi uma entrega muito grande para eles, foi muito difícil. Já tinha pensado na Carla, mas não sabia se ela ia aceitar. Consegui uma reunião com ela, leu o guião e a química foi imediata, percebeu logo o guião. Foi uma sinergia muito boa. Quando acabámos a conversa disse logo que era a Carla, não havia discussão possível sobre isso.
E com o Ruben Garcia?
O Ruben surgiu depois de o ver no "Listen" e em outras coisas que ele tinha feito. Comecei a falar com ele e a ver se fisicamente correspondia. Foi algo que se foi construindo. Depois fomos ensaiando, tivemos uma semana de improvisação muito rica, só os três a trabalhar. Foi um momento muito interessante. Saiu-lhes muito do corpo, há muita entrega da parte deles. Foi uma experiência muito bonita.
Foto: Direitos Reservados
Não é fácil estar a filmar hora e meia dois rostos e dois corpos.
Esse foi o meu maior desafio, a dificuldade de fazer um filme só com dois atores e como filmá-los. O filme foi muito planificado. Estava tudo muito organizado com o departamento de arte o departamento de fotografia. Eu sabia exatamente onde queria a câmara. O filme foi muito estudado, cada plano foi planeado ao detalhe.
O Carlos Ruiz Carmona tem essa característica de ser português e espanhol, de ter uma parte da sua vida e da sua carreira em Inglaterra, vive e trabalha no Porto. Onde é que se situa neste universo a que podemos chamar de cinema português?
Quando cheguei aqui já conhecia muito cinema português, mas já havia muitos outros autores que me tinham marcado. Eu tenho uma relação ambígua com o cinema português. Gosto muitíssimo de cinema português, há muitos autores que admiro profundamente, mas não sei se o cinema que faço se insere naquilo que pode ser considerado cinema português.
Porque decidiu instalar-se entre nós?
O motivo por que estou em Portugal é o cinema. Conheci muito bem o José Vieira Marques, o diretor do festival de cinema da Figueira da Foz. Uma pessoa espetacular, muito culta. Foi por ele que vim para Portugal. Mas não sei qual é a minha relação com o cinema português, não sei se me encaixo ou não, não tenho essa perceção.
Foto: Direitos Reservados
Quais são as expetativas agora que o filme vai chegar às salas?
Hoje em dia, e tenho falado sobre isso com outros realizadores, há pouco público para este tipo de cinema. As plataformas absorvem muito público. O cinema, para mim, é o espaço, é o ambiente onde as pessoas veem os filmes. Onde não podem manipular nada, não podem parar o filme. Onde se vê o filme tal como foi desenhado para ser visto. O espaço é fundamental. Mas temos de fazer um trabalho em conjunto para que o cinema português recupere o público.
E no caso do seu filme, o que espera?
Espero que o meu filme consiga ter um público, que as pessoas consigam comunicar com o filme. Isso é o mais importante. Podemos pensar nos festivais, mas o mais importante num filme é que comunique. Mais ou menos pessoas, vamos ver, mas que o filme consiga comunicar com elas. Que lhes consiga tocar, que consiga estabelecer um diálogo.