“Carlota Joaquina, entre o dever e a transgressão”: e se a rainha mal-amada não foi, afinal, a vilã da História?
Maria de Deus Bentes Manso e Maria Fernanda Matias, autoras da obra “Carlota Joaquina, entre o dever e a transgressão”, destacam qualidades de uma mulher controversa e à frente do seu tempo. "A sua reputação foi alvo de uma tentativa persistente de deslegitimação", afirmam.
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A História fixou-a como adúltera, conspirativa, maquiavélica e até inimiga dos interesses de Portugal, mas todas estas classificações pouco lisonjeiras podem ter sido fruto de boatos postos a circular pelos seus inimigos. Quem o defende são as historiadoras Maria de Deus Bentes Manso e Maria Fernanda Matias, cujo livro “D. Carlota Joaquina – entre o dever e a transgressão” (Parsifal) procura rebater as teses de que a soberana nascida em solo espanhol agiu sempre contra os interesses portugueses.
Este livro desafia a ideia comumente aceite de que Carlota Joaquina foi sobretudo uma inimiga de Portugal. Pelo menos, preferem equacionar várias possibilidades em vez de se deterem numa só. É uma obra que reabilita a reputação de Carlota Joaquina?
Não se trata de reabilitar, mas de proporcionar ao leitor uma compreensão mais alargada das suas circunstâncias. A insistência em retratá-la como “inimiga de Portugal” serviu narrativas específicas, fruto de uma historiografia de pendor anti-castelhano e liberal, ocultando, porém, contradições fundamentais: uma mulher perspicaz, que se insurgiu contra os limites impostos à sua capacidade de intervenção e que procurou agir num universo político estruturado para a excluir. Optámos por situá-la no seu tempo e no seu mundo — com ambivalências, tensões e escolhas — evitando qualquer leitura simplista ou condenatória.
Poucas soberanas portuguesas foram alvo de tanta maledicência e intriga ao longo da vida. Que razões objetivas encontram para tantas críticas?
D. Carlota Joaquina foi, desde muito cedo, uma figura incómoda dentro da corte portuguesa. A sua origem estrangeira, os vínculos familiares com a monarquia espanhola e a sua inteligência tornaram-na alvo de desconfiança. Procurou ocupar o lugar que lhe cabia na hierarquia da corte, reivindicando o exercício de prerrogativas que, com frequência, lhe eram negadas. As conspirações em que se viu envolvida foram, em grande parte, geradas pelo temperamento indeciso do marido. Era uma mulher de convicções inabaláveis. O seu posicionamento intransigente face às grandes transformações políticas (a ascensão do liberalismo e a recusa em jurar a Constituição) acentuaram a hostilidades à sua volta. Muitas das críticas que lhe foram dirigidas partiram de setores que se sentiam ameaçados pela sua presença e pela sua capacidade de articulação.
Viveu num período particularmente instável e delicado da nossa História. Que peso têm essas convulsões nos traços polémicos atribuídos ao seu caráter e comportamento?
As convulsões do seu tempo influenciaram profundamente a forma como D. Carlota Joaquina foi percebida e retratada. Viveu num momento de rutura entre modelos de governo: o absolutismo começava a ceder terreno às ideias constitucionais, os equilíbrios tradicionais do poder estavam em transformação, e as monarquias enfrentavam pressões internas e externas de grande intensidade. Nesse cenário, a sua postura firme e a resistência às mudanças foram interpretadas como obstinação ou desordem. O julgamento do seu carácter foi, muitas vezes, ditado pela leitura enviesada do seu posicionamento político. A sua determinação e tentativas de afirmação num mundo em rápida mutação, no qual a educação feminina e o papel da mulher se encontravam em transformação — um mundo que a empurrava para a irrelevância — tornou-a num foco de tensão.
Dos imensos boatos postos a circular acerca de Carlota Joaquina, acham que a esmagadora maioria eram puras invenções?
Parte desses boatos não resiste a uma análise documental rigorosa. Obedeceram, em muitos casos, a propósitos políticos: visavam fragilizar a sua posição, desacreditar a sua intervenção e isolar a sua figura no seio da corte e da opinião geral. A estratégia não era nova. Na cultura política da época, a difamação era um instrumento recorrente. No entanto, esses rumores adquiriram uma dimensão extraordinária no caso de D. Carlota Joaquina, talvez pela força com que afirmava os seus pontos de vista ou pela liberdade de movimentos que procurava preservar. A sua reputação foi alvo de uma tentativa persistente de deslegitimação, que associava rumores pessoais uma leitura distorcida dos seus gestos políticos. Alguns boatos terão tido origem em factos reais, deturpados ou exagerados; outros foram, simplesmente, construídos.
Têm sido várias as aproximações históricas e até ficcionais à figura de Carlota Joaquina. O que acreditam que o vosso livro traz de diferente em relação à oferta existente?
O nosso livro parte de uma leitura crítica da tradição historiográfica que consolidou uma imagem simplificada de D. Carlota Joaquina. Optámos por uma abordagem sustentada na análise documental, valorizando fontes, como as cartas, despachos e testemunhos coevos e na contextualização histórica, articulando essas dimensões com novas correntes historiográficas surgidas no âmbito da escola dos Annales. Não pretendemos uma defesa nem uma condenação, mas uma restituição de uma vida enquadrada por realidade complexa, privilegiando a compreensão das motivações, estratégias e constrangimentos no contexto do seu tempo. Tentamos oferecer um retrato com densidade humana.
O interesse que a sua figura tem suscitado deve-se mais aos traços do seu caráter, mesmo que negativos, do que às suas ações políticas?
O interesse que D. Carlota Joaquina desperta resulta de uma conjugação de fatores. É verdade que o seu carácter determinado, por vezes intempestivo, contribuiu para consolidar uma imagem singular. Mas essa imagem foi, em grande parte, construída a posteriori, muitas vezes de forma caricatural. O retrato físico que chegou até nós, amplificado por descrições satíricas e pouco benevolentes, criou uma figura grotesca que mistura o anedótico com o simbólico e foi muito explorada no imaginário popular. Essa representação contribuiu para esvaziar o papel que desempenhou. O seu legado reside na coerência de uma personalidade invulgar que tentou influenciar os destinos da monarquia, mesmo em circunstâncias adversas.
Creem que alguma vez ela chegou a sentir-se portuguesa ou todos os seus atos manifestavam essa ligação umbilical com a pátria de origem?
A questão da identidade, tal como hoje a formulamos, não se aplica com facilidade a figuras como D. Carlota Joaquina. A sua formação foi inteiramente moldada por uma lógica dinástica europeia, onde as alianças matrimoniais estavam ao serviço da estabilidade e do equilíbrio político. O sentido de pertença era construído a partir da função que cada um desempenhava no jogo de forças entre reinos, e não em torno de uma ideia de nacionalidade. Nesse contexto, D. Carlota Joaquina manteve, naturalmente, laços com a corte espanhola, mas desempenhou o seu papel como princesa e rainha consorte em Portugal com plena consciência das implicações políticas. Os seus atos não denunciam uma fidelidade exclusiva à Espanha, mas antes uma tentativa de afirmação pessoal num espaço onde disputava legitimidade e influência.
No tempo de Carlota Joaquina, eram muito escassas as mulheres com poder. Em que sentido essa circunstância pesou na polémica que ela causava?
Mais do que a escassez de mulheres com poder, o que pesou foi a ausência de legitimação. Por essa razão, a sua intervenção foi frequentemente desqualificada, tratada como intriga ou conspiração. Isso tornou-a vulnerável à crítica e à difamação. Mas D. Carlota Joaquina construiu a sua singularidade pela persistência com que tentou ocupar um espaço de poder real, singularidade que ajuda a compreender o grau de contestação que enfrentou e a forma como foi representada.
Carlota Joaquina nunca se conformou com a inação política a que queriam reduzi-la. Era uma mulher fadada para liderar?
Tinha, indiscutivelmente, o temperamento, a ambição e preparação necessários para exercer o poder. Demonstrava uma consciência da sua posição na hierarquia da monarquia e procurava transformá-la em influência concreta. A forma como se envolvia nos assuntos de Estado, a clareza com que percebia os jogos de força internacionais e a sua capacidade para sustentar posições com firmeza revelam um perfil raro. Era, nesse sentido, uma figura à qual teria assentado o manto de uma Maria Teresa da Áustria ou de uma Isabel I de Inglaterra.
Escrevem a dada altura que Carlota Joaquina “contribuiu para ampliar o entendimento do mundo feminino na História”. Foi uma precursora a vários níveis?
Preferimos dizer que a sua vida desafia as leituras habituais sobre o exercício da autoridade. Não foi uma precursora no sentido programático ou ideológico do termo, mas sim uma figura que, pela força das suas ações, obrigou a repensar certos pressupostos históricos. D. Carlota Joaquina ampliou o campo de observação sobre os mecanismos do poder, justamente por não se ter conformado com o papel que lhe era atribuído. Fê-lo de modo intuitivo, por convicção própria, sem qualquer desejo de representar causas ou modelos futuros. Ainda assim, acabou por deixar um rasto singular.
Destacam a capacidade rara de resistência e adaptação como duas das suas maiores virtudes. Estas qualidades eram superiores à sagacidade?
Entendemos que estas qualidades devem ser observadas em interação. A resistência de D. Carlota Joaquina é notável: suportou deslocações forçadas, marginalização política, vigilância constante, e nunca se deixou neutralizar. A adaptação foi, no seu caso, um instrumento de sobrevivência e reposicionamento, não de cedência. A sua sagacidade nem sempre teve consequências práticas favoráveis. Ainda assim, a leitura que faz dos acontecimentos internacionais revela agudeza estratégica. É a conjugação dessas três forças — resistência, adaptação e sagacidade — que permite compreender a densidade da sua personalidade. Em conjunto, transforam-na num caso extraordinário de persistência no seio de uma estrutura que nunca lhe conferiu legitimidade formal.
Embora tenha vivido a maior parte da sua vida no século XIX, era, na sua forma de agir e ver o mundo, uma mulher do século anterior?
D. Carlota Joaquina era herdeira de uma conceção de soberania própria do Antigo Regime. A sua fidelidade ao princípio da autoridade régia é à legitimidade dinástica aproxima-a do universo mental do século XVIII. O seu repúdio pelas transformações liberais que marcaram o início do século XIX não decorre de ignorância, mas de convicção. Rejeitou o novo modelo não por desconhecimento, mas por considerá-lo ilegítimo. Contudo, seria injusto vê-la como uma figura alheada do presente. As obras que compunham a sua biblioteca pessoal demonstram que acompanhava o debate intelectual. Estava informada ainda que não se deixasse seduzir pelas novas doutrinas. Conhecia o seu tempo, mas escolheu permanecer ligada ao modelo de mundo que lhe fazia sentido.
Apesar de todo o empenho colocado na pesquisa, sentiram que ainda permanecem muitos espaços em brancos na sua vida, sobre os quais pouco se sabe?
Sem dúvida. Apesar do empenho colocado na pesquisa e da análise cuidada das fontes disponíveis, permanecem “zonas de sombra” na vida de D. Carlota Joaquina. A História está em permanente construção — não apenas porque a documentação conhecida pode ser reavaliada ou surgir nova documentação, mas também porque os enquadramentos interpretativos se transformam com o tempo. As correntes historiográficas mais recentes, nomeadamente as que cruzam género, cultura política ou história das emoções, têm trazido leituras mais complexas de figuras como a dela. A interdisciplinaridade também tem sido fundamental nesse processo. Por exemplo, o recurso à análise de retratos e caricaturas — feita com ferramentas da história da arte ou da iconologia — pode revelar muito sobre a forma como o poder e o género eram representados e percebidos na época. Da mesma forma, a linguística histórica pode ajudar a reavaliar o conteúdo das suas cartas, destacando subtilezas discursivas que antes passariam despercebidas. A figura de Carlota Joaquina permanece, por isso, aberta a novas leituras — não por falta de rigor, mas porque o próprio exercício historiográfico implica constante revisão e reinterpretação.
De que forma uma compreensão mais exata da figura e da ação de Carlota Joaquina nos ajuda a compreender melhor Portugal, a Europa e o Mundo desse tempo?
A figura de D. Carlota Joaquina permite aceder às grandes tensões que atravessaram o mundo atlântico entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. A sua trajetória interseta-se com os movimentos de reconfiguração do poder, tanto na Europa como na América do Sul, e obriga-nos a observar as dinâmicas políticas, diplomáticas e institucionais para além das fronteiras nacionais. É um ponto de observação privilegiado para compreender o que estava em jogo no choque entre monarquia absoluta e liberalismo emergente, entre unidade imperial e fragmentação dos territórios ultramarinos. D. Carlota Joaquina revela-se um espelho das contradições do seu tempo: os dilemas da legitimidade, o papel das alianças familiares, a tensão entre fidelidade e autonomia no interior das casas reais.
Uma leitura mais aprofundada da sua ação e da sua posição permite, assim, entender melhor os desafios que enfrentavam os impérios europeus, em particular a monarquia portuguesa, num contexto de transformações globais. É através das histórias conectadas e da história global que se abrem novas possibilidades de interpretação, permitindo situar Carlota Joaquina nas redes políticas, culturais e imperiais mais amplas do seu tempo.
Os seus últimos anos foram particularmente penosos. Morreu amargurada e vencida, em vosso entender?
Os últimos anos de D. Carlota Joaquina foram marcados por isolamento e pelo declínio das suas capacidades físicas. Foi afastada da vida política, mantida sob vigilância, e viu consolidar-se uma ordem constitucional que sempre combatera. A monarquia que defendia, de base tradicional e autoridade régia inquestionável, estava a ser substituída. É plausível admitir que tenha experimentado um sentimento de frustração perante a erosão do mundo a que se mantivera fiel. Importa, no entanto, recordar que o filho, D. Miguel, ocupava o trono desde 1828. A aclamação do rei foi, aliás, uma das suas últimas saídas públicas de Queluz e terá tido para ela um evidente valor simbólico. Esse facto não é indiferente: tratava-se, de certo modo, da reposição da ordem dinástica como a entendia. Diríamos antes que morreu isolada, mas não vencida.