"Portuguesa" é o sexto álbum de estúdio da fadista de 38 anos. Nesta entrevista ao JN, Carminho revela tudo sobre a construção do disco, do prazer e da dor, do passado e do futuro, da evolução do fado e diz-nos ainda que é admiradora da catalã Rosalía.
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Carminho nasceu com o fado no sangue e é a ele que sempre volta. A artista, que a cada novo disco usa por título apenas uma palavra - normalmente tão vasta como o seu conteúdo - é desta vez "Portuguesa", sexto álbum de estúdio que é também mais um passo no seu trabalho de autodescoberta, ainda longe de terminar. O disco volta a ter produção da própria fadista, temas da sua autoria e de convidados, um poema cedido por Manuel Alegre e embrulha em música dois clássicos de Sophia e David Mourão-Ferreira. Na busca das diferentes matrizes do fado tradicional, está a incessante inquietude de Carminho, de 34 anos, e poderá estar também a magia do seu trabalho, como admite nesta entrevista ao JN.
Continua à procura da vertigem onde vai encontrar a sua identidade? Sente que ainda não a encontrou?
Eu acho que isso é um processo contínuo, porque nós estamos sempre a mudar, então parece que nos escapa das mãos, um bocado, quem somos. Eu acho que a identidade não é um termo genérico; é pessoal, íntimo, que não tem só a ver com coisas que nos identificam em comum, como grupo, mas sobretudo onde nos sentimos bem e o que queremos dizer. Na verdade, o saber quem somos, e isso é sempre uma procura. E como eu não me separo da música, também a identidade musical, ou a sua busca, acaba por ser um reflexo constante disto.
Mas não será um caso de na busca é que está a magia?
Sim, sem dúvida, aliás já me apetece fazer outro disco. Não é que eu não queira tocar este ao vivo, que é algo que eu também é outra procura incrível, mas o processo de construir o disco é muito gratificante; muito doloroso também. Foram muitos anos, três anos na construção desta peça e portanto é aí que eu me identifico, eu gosto realmente do processo.
Fala também dos caminhos e possibilidades dentro da mesma matriz do fado. Isso é relativo à questão da eterna dicotomia, do equilíbrio entre o respeito pelo fado e as novas sonoridades?
Por acaso não, neste caso as várias combinações dentro da mesma matriz é exatamente antes mesmo de dar espaço à experimentação. Ou seja, mesmo na prática natural do fado existe uma dinâmica de combinações: por exemplo o facto dos fadistas poderem trocar as letras dos fados por outras, as palavras dos fados tradicionais podem ser trocadas desde que coloquem um poema com a mesma estrutura. E isso dá uma abertura e uma possibilidade enorme; e também podes perceber o inverso, que é se eventualmente se descobre um poema numa estrutura tradicional e se compõe originalmente nessa estrutura uma música - que se pode chamar, se tiver as características de composição, de fado tradicional, apesar dele ser original e novo. É o caso dessa tentativa e dessa busca que eu andei a fazer neste disco em relação, por exemplo, ao fado de Sophia de Mello Breyner, que é original mas que foi composto numa estrutura que pretende ser de fado tradicional.
Se vier outro fadista e quiser trocar a letra, colocar outras sextilhas vai funcionar e vai-se poder interpretar aquele fado também. E é nestas combinações que o fado, também, além de outras questões, se encara como um instrumento e como uma língua viva, tem muitas possibilidades e que não se esgota em si mesmo, e que não se esgotou nos repertório que foram feitos por Amália ou pelo Marceneiro.
Nesse sentido também vai introduzindo instrumentos não considerados tão tradicionais no fado e agora há um novo neste disco?
Exato: na sequência dessa prática constante do fado e da repetição e de experimentar cantar os mesmos fados e ver no que é que eles resultam, começam então a surgir oportunidades, brechas para a experiência e a experimentação. E o que eu procuro nessas sonoridades é, de alguma maneira, servir a canção, servir o fado com os propósitos que os outros instrumentos tradicionais que já lá estão servem, mas experimentando outra textura, outro universo. E por isso, neste caso, o mellotron é um instrumento muito interessante, que vem sugerir instrumentos acústicos porque é gravado em fita; e nos seus vários tons, essa organicidade, essa sensação de instrumento acústico traz muita união também com os instrumentos do fado mas traz uma potencialidade sonora e de textura muito grande. É como a guitarra elétrica que já vinha do disco anterior, "Maria", o lap steel, uma guitarra elétrica horizontal que traz imensas texturas ao universo. Para trazer sobretudo a experiência de um fado ao vivo, o mais parecido e mais próximo das emoções que eu senti e sinto quando espero ouvir um fado - mesmo que ele seja só tocado na guitarra, viola e voz. A busca é sempre dentro desse universo do fado e daquilo que eu espero sentir, porque o fado é muito mais do que, na minha opinião, a própria música: é as emoções que vêm muitas vezes desse encontro dos artistas e dessa dinâmica.
O disco foi gravado com banda em sessões contínuas, e já não é a primeira vez que usa este sistema. É para manter o som mais espontâneo, mais próximo do ao vivo?
Sim, eu acho que esse método vem muito ao encontro dessa espontaneidade e dessa ligação muito metafísica entre os próprios músicos e as respirações e a música, não é? Até os silêncios que têm de ser sentidos de maneira comum. Quando estás fechada numa booth, o silêncio é só teu, é muito diferente; podes controlar muito melhor o erro, as repetições, e não comprometes o resto da banda certo, mas ao mesmo tempo não tens a ligação, ali o silêncio não liga. E quando uma banda está toda junta, até o silêncio aglutina a energia dos músicos. E depois também acarreta escolhas de produção, como a questão dos ensaios e da forma como temos de estar todos juntos e tentar não falhar - e ao mesmo tempo assumir essa falha e esse erro, de uma forma espontânea e com naturalidade. Portanto eu acho que traz textura, uma energia diferente à gravação.
Também já não é a primeira vez que assume a produção: é porque gosta de explorar, mas na sua visão?
Exatamente, eu acho que foi algo muito natural no primeiro disco, porque eu ia à procura de memórias de infância e de lugares muito escondidos dentro de mim e eu queria traduzir essas experiências em música. E portanto era difícil dar a outra pessoa a traduzir uma coisa que nem eu sabia bem pôr em palavras o que era. Porque eu acho que um produtor é alguém que traduz o artista é quem tenta potenciá-lo máximo, ampliar a visão dele, não é? Tem de ser um diálogo, e esse diálogo naquele disco foi feito de monólogo, de mim para mim, que acabou por resultar muito natural. Desta vez eu até tive pretensões de ter um produtor, mas depois quando começaram as sessões, a pré-produção já estava tão encaminhada... não sei, sinto sempre como se não tivesse acabado o disco anterior e tivesse ainda mais algo dizer..
Referiu a sua infância: nasceu numa família de fadistas, os seus pais tinham uma casa de fados que até Amália frequentou: sente que nasceu para ser fadista, ou que já nasceu mesmo fadista?
Sinto, sem dúvida nenhuma. Eu acho que o fado é muito mais do que uma escolha. Já cá estava, é para onde eu me embico mesmo quando não quero, é para onde eu quero voltar cada vez que experimento sair. É realmente um mistério, mas é uma relação dedicada. É uma parte do meu próprio tecido.
No entanto, chegou a seguir marketing. Era um plano B?
Não sei. É a juventude... O marketing foi uma ideia que eu alimentei durante uns tempos, porque fiquei com a ideia de que não podia ser artista, eu não podia fazer do fado a minha profissão, porque era muito fácil, eu cantava, saia tudo muito fácil, eu ia ganhar dinheiro com isso? O meu pai, em resposta a isso, disse-me: 'olha, primeiro é um grande privilégio uma pessoa poder fazer aquilo que gosta, nunca desdenhes essa possibilidade, porque há muito poucas pessoas que fazem aquilo para que realmente são fadadas. E depois não penses que não vai dar trabalho, vai dar um trabalhão' - e dá (risos). Mas sim, nesse entretanto escolhi publicidade, tirei o curso, coisa que me foi bastante útil porque que deu imensas ferramentas, não me arrependo nada porque cresci com imensas capacidades que não teria; mas a verdade é acabei o curso completamente, desiludida, comigo. Então, fui dar a volta ao mundo, um ano sabático, voluntariado, um grito de Ipiranga contra essa decisão que eu tinha tomado de ser markeeter num escritório. E quando voltei, sabia definitivamente que era o fado que me ia receber.
Hoje em dia estamos num concerto de Milton Nascimento e ele fala de si, Rosalía idem, apenas para nomear alguns; a que sabe este reconhecimento transversal?
Eu não sei, é um bocadinho desconcertante, não é? Eu tenho tido um privilégio enorme na minha vida, acho que é muito abençoada. Não só pelo dom que me foi dado, como por poder exercê-lo, e poder ser livre na forma como o exerço, no tempo em que nasci e vivi. Nem sei bem como cheguei a estes duetos, com o Milton, com o Chico Buarque, e claro, por um lado é saboroso, porque alguma coisa certa devo estar fazer, por outro é o mistério da própria metafísica musical, que faz encontros destes; e depois o permanecer nessa amizade, que é talvez a coisa mais bonita, que é conseguir que estas pessoas, que nós continuemos a criar uma relação e uma troca; sou muito abençoada por ter tido estas pessoas na minha vida. O caso da Rosalía foi inesperado, antes do concerto já tinha lido numa entrevista que ela me cantava em bares...
Ela mostrou mesmo vontade de fazer um álbum consigo: vai acontecer?
Não sei (risos)... é assim, o futuro nunca se sabe, eu acho nós temos que ser espontâneos. Ela é incrível, sou admiradora dela também, identifico-me com esta forma séria de tratar o género musical. E no caso dela, pela produtora que ela é, chega a um lugar muito próprio, muito unânime. Eu acho que nós deste lado latino-europeu ficamos todos orgulhosos do percurso dela. E no meu caso, sinto que talvez seja o facto de eu também ter uma linguagem tradicional, uma linguagem a que sou fiel, e que apesar das contaminações positivas com outros géneros é muito importante que a pessoa acredite e seja fiel ao próprio género. Talvez inspire ou encante ou toque um artista que também queira ser fiel ao seu próprio género, apesar de todas as mudanças que introduz, faz sentido? E [ela] também foi de uma enorme generosidade, não foi? Referenciar artistas vivos contemporâneos da nossa geração é sinal de muita generosidade, segurança, confiança.
O que acha que as pessoas ficariam surpreendidas em saber sobre a Carminho?
Acho que muitas coisas poderiam surpreender, porque eu sou um bocadinho tímida. Mas uma coisa engraçada é que quando estou no processo de produção de um disco eu gravo tudo em dictafones. Então lá vou eu pela rua, quando me lembro de uma melodia, quando me lembro de uma música, de alguma coisa, vou pela rua a cantar músicas para o dictafone - muitas vezes completamente estapafúrdias. Quando volto a ouvi-las, às vezes nem faço ideia do que era, e depois com carros a apitar pelo meio... E curiosamente, por causa desse processo, no outro dia encontrei a primeira gravação que eu fiz do "Praias Desertas", que é um dos temas do novo disco, e do outro lado está o meu filho, que ainda não falava, vê-se claramente que lhe estou a dar a papa porque ele está a fazer aqueles barulhos e eu estou a cantar para ele a canção e está a sair assim, naturalmente. É um processo muito meu e que acaba por ser, às vezes até para mim, engraçado.