Joacine Katar Moreira leva língua portuguesa ao terceiro dia da Berlinale.
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Depois do sucesso do seu filme anterior, "Retrato de uma rapariga em chamas", aguardava-se com expectativa o novo trabalho de Céline Sciamma, um dos nomes de referência do cinema francês de hoje, não só pela sua carreira de realizadora como também pelos argumentos que tem escrito, por exemplo para André Téchiné.
E "Petite maman" demonstra para começar uma atitude inteligente por parte de Sciamma. Poderia ter investido o prestígio alcançado, nomeadamente com o prémio de melhor argumento em Cannes e a nomeação para um Globo de Ouro, e abraçar um projeto de produção mais ambiciosa. Pelo contrário, aposta num filme de uma enorme sensibilidade, mas que transforma num dos mais belos retratos do imaginário de infância de que temos memória.
Num primeiro plano-sequência que nos mostra desde logo estarmos na presença de uma cineasta de enorme criatividade e sensibilidade, descobrimos que Nelly, uma garota de oito anos, acaba de perder a avó. Na sequência seguinte estamos com os pais de Nelly, em casa da avó, que têm de esvaziar. É nesses dias que Nelly encontra na floresta próxima uma outra garota, em frente a uma cabana de que a mãe lhe falara. Mas essa garota, que a vai convidar para a sua casa, não é mais do que a própria mãe quando tinha a sua idade.
"Petite maman" é um filme em estado de graça, iluminado pela bela fotografia de Claire Mathan e pela presença das duas jovens protagonistas. Sciamma usa o cinema como se fosse uma história que se imagina quando se é criança, voltando a abordar no seu universo os rituais de passagem a um estado adulto, aqui de uma forma precoce, motivada pela necessidade do luto.
E a língua portuguesa continua a ser ouvida na Berlinale. Welket Bungué, ator e autor da Guiné-Bissau que tem trabalhado no nosso país, regressa à Berlinale, onde o ano passado se revelou como protagonista de "Berlin Alexanderplatz", agora como realizador de "Mudança", a que chamou um filme-dança.
Projeto produzido no âmbito do programa Essenciais, passando da realidade improvisada das ruas de Marselha para a ilusão do palco, filmado no Teatro do Bairro, em Lisboa, "Mudança" coloca em cena Joacine Katar Moreira a recitar poemas de Paulo Tambá Bungué e a expressar as suas convicções políticas e sociais sobre as questões cruzadas do racismo e do sexismo, em busca da mudança de que o título nos fala. Um pequeno e belo produto audiovisual a que Berlim dá uma merecida oportunidade de se mostrar ao mundo.
Entre o conto de fadas e o drama traumático
Além do filme de Céline Sciamma, outro forte concorrente ao Urso de Ouro desta peculiar edição da Berlinale, foram já colocados à disposição para visionamento outros dois filmes em competição, oriundos da Geórgia e da Hungria e que não podiam ser mais diferentes.
Enquanto "Forest - I see you everywhere", do húngaro Bence Fliegauf, é uma coletânea de histórias traumáticas, captadas por uma câmara à mão, nervosa e passando bruscamente de personagem para personagem, o que torna o filme bastante incómodo de ver, "What do you see when we look at the sky", do georgiano Alexandre Koberidze, é uma das boas surpresas do festival, com o seu delicioso conto de fadas contemporâneo.
O filme inicia-se com o encontro fortuito entre dois jovens, que se cruzam na rua em direções diferentes e chocam de tal forma que um deles deixar cair o caderno que tinha na mão. Como a situação se repete, combinam encontrar-se no dia seguinte, num café que ambos conhecem. Mas a rapariga, ao dirigir-se a casa, é avisada pelo vento que uma maldição se abateu sobre eles e que irão acordar na manhã seguinte com uma outra forma humana. É por isso que, um dia depois, apesar de estarem ambos no mesmo local, não se reconhecem. O filme evolui então entre o realismo das ruas de uma pequena cidade georgiana, marcada pelos jogos do Campeonato do Mundo de Futebol, e a magia que envolve estas duas personagens até ao seu inevitável reencontro. Como a vida, e o cinema, tanto precisam de um pouco de poesia...
É também na seção Encounters que se têm visto algumas obras que nos mostram um cinema vivo, diverso e chegado de várias latitudes. "Bloodsuckers", do germânico Julian Radlmaier, é descrito como uma comédia marxista de vampiros, o que diz bem da sua abordagem original. Apesar dos paradoxos temporais que o realizador vai espalhando ao longo da narrativa, o filme passa-se em 1928 numa zona do Báltico e integra uma rica herdeira, o seu fiel servo, um autoproclamado barão que entrara num filme de Eisenstein e um grupo de trabalhadores que estuda "O capital", de Karl Marx. Confuso? Não. Apenas uma forma divertida do realizador continuar a sua digressão sobre a luta de classes, uma discussão política que está longe de se encontrar terminada.
É de política também que nos fala "Azor", um filme que nos chega da Suíça, de onde é também um banqueiro independente que se desloca a Buenos Aires, durante o regime ditatorial dos militares, em busca de um seu associado que desapareceu, envolvendo-se no complexo tecido social e económico local. Uma obra intrigante de Andreas Fontana, mesclando o íntimo e o privado com a esfera política e jogando com o forte contraste entre culturas.
Do Egito à última floresta brasileira
Impressionante é ainda "As I want", da palestiniana radicada no Egito Samaher Alqadi. O filme cruza um relato autobiográfico contemporâneo da realizadora, memórias familiares e sobretudo imagens do período da "primavera árabe" de 2013/2014, mas salientando os diversos abusos sexuais de que foram alvo mulheres que participavam nas manifestações. Uma forma da realizadora abordar um problema endémico da sociedade egípcia, que não ficou resolvido com a previsão no sistema judicial de penas para este tipo de crimes. Numa atitude desafiadora de mentalidades, a realizadora percorreu vários bairros do Cairo, de câmara em punho, sem o cabelo coberto e de saia curta, respondendo aos piropos mais indecentes com o visto-me e ando na rua "como eu quero" que dá o título ao seu filme.
É também do Egito que chega "Souad", de Ayten Amin. O filme já recebera a famosa etiqueta Cannes 2020, embora tal não correspondesse a uma projeção efetiva no festival francês, que não chegou a realizar-se, surgindo agora na secção Panorama da Berlinale. Ambientado numa das cidades do delta do Nilo, o filme acompanha um grupo de raparigas, entre o fim da adolescência e o início do estado adulto que, no interior das suas casas, discutem livremente as suas vidas amorosas e a perspetiva das suas vidas sexuais, ao mesmo tempo que projetam personalidades diversas nas redes sociais. Mas um acontecimento trágico vai levar uma delas a um inesperado percurso iniciático.
Também no Panorama, o realizador e antropólogo brasileiro Luiz Bolognesi continua o cruzamento das suas duas maiores paixões com o impressionantemente belo "A última floresta". Vivendo vários meses junto do povo Yanomani, na floresta entre o Brasil e a Venezuela, e trabalhando em conjunto com um dos seus xamãs, Davi Kopenawa Yanomani, o realizador constrói uma narrativa onde, ao mesmo tempo que alerta para os perigos dos garimpeiros que usurpam as suas terras e os seus rios em busca de ouro sob o beneplácito do regime de Bolsonaro, nos mostra os seus ritos espirituais, as suas lendas primitivas, a sua vivência em comunidade, o seu quotidiano de sobrevivência. Um tema a que voltaremos em breve com uma conversa mantida com Luiz Bolognesi.
Entretanto, foi mostrado pela primeira vez o documentário "Tina", que decerto poderemos ver quando as salas voltarem a abrir portas. Este trabalho, avalizado pela própria Tina Turner, é composto por partes de uma entrevista que deu em 2019 em Zurique, onde tem casa; reproduções da gravação áudio da lendária entrevista à revista "People" em que revelou pela primeira vez os abusos que sofria por parte do marido, Ike Turner; por declarações de vários dos seus colaboradores; e por uma espantosa galeria de imagens de arquivo.
Tina Turner já por várias vezes assumiu que aceitou escrever um livro e colaborar com um filme biográfico, realizado em 1993 com Angela Bassett como protagonista, como forma de falar pela última vez do período traumático da sua vida e da sua carreira antes de se estabelecer a solo. Não evitando naturalmente essa abordagem, "Tina" é sobretudo o relato emocionante de uma mulher única, capaz de ultrapassar todas as adversidades e de se tornar um exemplo de vida e uma artista adorada por milhões de fãs em todo o Mundo.