Comecemos pelo fim. "I don't care, I love it" é o que os milhares de fãs que se reuniram na quinta-feira à noite para prestar a sua devoção verde a Charli XCX, no Primavera Sound Porto, pensam de qualquer palavra que contrarie a sua crença.
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Uma hora e quinze foi o tempo de duração do concerto. Pode parecer pouco tempo — talvez menos do que o que alguns demoraram a tentar chegar ao recinto — mas, nas mãos de Charli XCX, esse quarto de hora multiplicado por cinco torna-se numa epifania de suor, alarido e coreografia em modo ctrl+c, ctrl+v.
Charli chegou, como os fãs previram, com a precisão de um oráculo TikTokiano: botas, cuecas cavadas, óculos enormes, cabelo escorrido com a exatidão de um nível de bolha e uma atitude de quem já sabia, de antemão, que "50% ou mais estavam ali só por ela". Autoconhecimento é poder.
Logo em “360” com toda a gente a girar, ela canta: “When you're in the mirror just looking at me”. E não é só verso, é ameaça estética. Segue-se “666 and the princess tree” e a princesa ajusta as cuecas no rabo com a naturalidade de quem faz isso num altar. Delírio. E o mantra absoluto: “I’m your number one” - ninguém duvidou e todos os presentes estavam ali para demonstrar isso mesmo.
Medusas com luvas brancas e lágrimas nos olhos
“Sympathy is a knife” foi cortante e deliciosa. “Guess” pôs tudo a dançar como se os fãs tivessem pago bilhete só por esse momento — e alguns provavelmente pagaram. A fórmula é simples, mas eficaz: desfilar para a frente e para trás, de gatas quando a batida pede, e deixar os cabelos voarem como se a festa fosse uma ventoinha emocional coletiva.
“Vroom Vroom”, um fóssil pop datado de 2020, foi recebido como um hino nacional. E “Blame it on your love” transformou os homens da plateia em crooners de festival — talvez nunca se tenha ouvido tantos homens a clamar por culpa amorosa.
“I fucking love you, Porto, as loud as you can bitch” - foi o grito de guerra. E os seus súbditos obedeceram: às vezes é mais bonito o que está a acontecer fora de palco, do que dentro. A coreografia das crianças pequenas na bancada (o festival é grátis até aos nove anos), os abraços e lágrimas dos amigos que planearam a ida ao concerto com meses de antecedência, as t-shirts apuradas até terem o verde perfeito, as viagens das mais diversas latitudes ou as juras de amor envergonhadas entre casais quando aparece "This was not a brat summer, this was a forever" valem mais do que Charli sozinha num palco gigante. Mas, sem ela, nada disto aconteceria. E isso tem todo o valor.
Do outro lado do espetro, no palco Vodafone (ou catedral, dependendo do grau de espiritualidade envolvido), ANOHNI ofereceu uma cerimónia. Agora com nome completo — ANOHNI & the Johnsons — a artista, que deixou de ser Antony para reclamar um espaço de expressão mais inteiro e mais feminino, chegou com luvas brancas, presença espectral e coração em aberto.
“Não poderia estar naquela cabeça nem um minuto”, murmurou alguém. “É super inocente, dá vontade de protegê-la deste mundo”. Entende-se: há em ANOHNI um desamparo calculado, mas ainda assim avassalador. “Scapegoat” foi uma espécie de facada com fita de cetim.
Oito músicos de orquestra em palco, visões da Austrália em vídeo, um apocalipse com produção de luxo. A voz, sempre essa voz: uma viga emocional que sustenta cada silêncio entre canções.
Já no palco ao lado, quase simultaneamente, tocava Magdalena Bay. Em “That’s My Floor”, em fato vermelho, o público estrangeiro cantava com ela. A cantora pop tem a particularidade de, ao contrário dos outros, estar constantemente a mudar de figurino, apesar de manter sempre os seus sapatos de ballet. Em “Angel on a Satellite”, com figurino azul, máscara e maquilhagem conceptual, deixou o público a flutuar no seu próprio delírio emocional.
“Love is everywhere”, gritou-se. E foi. Por um momento. Até ao próximo artista. Porque o verdadeiro problema do Primavera não é a música, é o FOMO ("fear of missing out") - esse fenómeno que deixa o público nervoso por perder algum concerto.