
Deerhoof
Gonçalo Delgado / Global Imagens
Entusiasmo em Barcelos: Deerhoof, THEE Satisfaction e HHY and the Macumbas são tão bons que têm que voltar. As descobertas da segunda noite do festival e a expulsão do palco dos Cosmic Dead.
Greg Saunier, o baterista dos Deerhoof de São Francisco, comoveu-se connosco: da última vez que vieram cá tocaram "para 43 pessoas". Ele tem os joelhos dos jeans rotos, uma t-shirt com a enorme língua dos Stones a brotar-lhe vermelha do peito e arfa para o microfone da pequena vocalista Satomi Matsuzaki. "Isso foi a última vez, hoje acho que estão aqui mais do que 43, não?". O público ruge, aprova, palmas, ele diz de rajada: "Estou incrivelmente feliz e excitado e surpreendido e incrivelmente nervoso. Obrigado "Milhóis" por nos receberem". O ardor foi retribuído cheio de sorrisos e houve "crowd surfing" (mas só o de dois bêbados risonhos, não o dos que se lançam possuídos pela música e se deixam elevar no ar como a cruz). Foi a maior enchente da segunda de quatro noites do Milhões de Festa de Barcelos, que este domingo termina com mais 16 horas de música em 3 palcos e uma piscina.
É especial, Deerhoof, "psycho rock avant garde", Satomi num vestidinho curto de BD (Satomi tanto pode ter 16 anos como 46), faz coreografias e versos infantis em japonês e dois guitarristas contorcem-se ao seu lado endoidecidos: John Dietrich com a guitarra puxada à altura do coração, a arranhá-lo, e Ed Rodriguez, guitarrista mariachi de grande cabeleira "canis lupus" e uma escandalosa guitarra cor de rosa, exaltado como um toureiro. Ganhou-nos o coração todo aquele surrealismo desamparado da micro-épica e da "soup opera" que é o rock. Queremos voltar a vê-los, por exemplo no Parque da Cidade do Porto durante a Primavera.
O Parque Fluvial de Barcelos onde estamos é disposto como uma assembleia romana, em socalcos, num jardim de pedra e relva, com palcos nas extremidades e debaixo de um horário britânico. Maravilhosamente, quando acaba uma banda de um lado, começa logo outra do outro, não há publicidade nem poluição sonora, nunca se perde tempo, às vezes nem se respira.
Mas quem não cumpre vai expulso. Aconteceu aos cabeludos Cosmic Dead, de Glasgow, mordidos no palco Vodafone pelo síndrome 5 horas seguidas dos Blur, que ficaram colados num delírio "space rock" só deles, 20 minutos para lá da hora e eles no mesmo riff altíssimo, cabelos a remoinhar, o público da frente em "headbang", e eles a levantar as guitarras a gemer acima da cabeça, a segurá-las como se fossem estandartes de santos ou divindades no altar, hipnotizados como drones naquilo. Acabaram com eles de repente: desligaram-lhes a ficha, assim, e tudo parou e voltamos a respirar.
Quando começamos todos a andar para o palco maior do Milhões, os ouvidos ainda dentro do zumbido, já se ouviam as vozes negras da Stas e da Cat e o hip hop THEE Satisfaction e isso foi melhor do que quando estamos no restaurante à espera da comida, vamos à casa de banho e quando voltamos o prato está prontinho na mesa à nossa espera. Mas o banquete não foi completo e por isso elas vão ter que voltar - e não é só por causa do computador ter "crashado" a dez minutos do fim e disso ter levantado riso e embaraço (batemos palmas com elas, elas cantaram à capela, foi como se nos tivéssemos abraçado no ar). Até o Mac reiniciar e a trilha delas estar disponível outra vez só sobraram dois minutos para uma canção curta e por isso ficamos todos a salivar. São importantíssimas, as THEE Satisfaction, são negras desajeitadas e cómicas (Cat veio de barrete de praia, calções, meias brancas puxadas, gordita numa enorme t-shirt com caveiras estampadas a chocalhar), mas o seu alt-hip hop desviado é erudito e muito bom, é cintilante, e está a fazer por Seattle o que o grunge fez pelo rock quando o recarnalizou.
O que aconteceu a seguir foi misterioso e sugou-me todo ar: nunca tinha visto HHY and the Macumbas e fiquei preso no palco Vodafone como um zombie, estático e telúrico, a ver crescer o zunido daquele combo de jungle-dub diabólico. São um octeto e impressionam porque a música não parece nunca ter um centro definido, é antes uma manta elétrica que voa desvairada e preenche todo o espaço daqui até ao horizonte. Há duas baterias que parecem tocadas com ossos, um idiofone estalado de metal, dois trompetes sirenais e sempre espetados no ar, um baixo de sob pressão, rotundo e puxador, e dois estrategas de dub a assombrar a caixa de botões que sobem e descem e fendem o som e o fazem inflamar. À frente desses sete, mas sempre, sempre de costas voltadas para nós, com uma máscara rubra zangada posta na parte de trás da cabeça, a máscara pontuda a olhar para nós, um músico de fato preto agitava, como se estivesse continuamente no choque da paragem cardíaca, duas convulsivas maracas. Não saberei dizer porquê, talvez fosse o recorte do cabelo do homem da máscara, com as pontas de baixo a enrolar, mas passei o tempo todo daquela transmissão, debaixo dos feixes de luz vermelha e do doce apocalipse de ruído, a pensar em Nick Cave a despenhar-se em lágrimas quando lhe trouxeram a notícia. Todo o meu coração para Nick Cave que perdeu um filho para sempre caído num penhasco do East Sussex.
