Esta segunda-feira é dia de Manoel de Oliveira no Festival de Cannes, com exibição de "Vale Abraão".
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Quem chegasse à cidade da costa francesa mediterrânica onde decorre a 76ª edição do Festival de Cannes, diria que Leonor Silveira era a grande homenageada deste ano. Na realidade, muito mais do que a própria Catherine Deneuve, que está no cartaz oficial, a portuguesa surge logo desde a entrada em Cannes em centenas e centenas de cartazes, reproduzindo o tema central da imagem deste ano da Quinzena dos Cineastas.
Apesar de uma programação variada e sempre apetecível, tal é a paixão da Sociedade de Realizadores e Realizadoras Franceses pelo cinema de Manoel de Oliveira e em especial por "Vale Abraão", onde o mestre portuense descobriu Leonor Silveira, que a organização do evento paralelo de Cannes organizado na sequência de Maio de 68, atribuiu à nossa atriz o motivo central do cartaz da sua edição de 2023.
A razão para tal impacto de Leonor Silveira, que chega hoje a Cannes, tem a ver precisamente com a exibição, hoje à tarde, de "Vale Abraão", celebrando o trigésimo aniversário da estreia mundial da obra-prima de Manoel de Oliveira, precisamente na Quinzena. Um filme que, logo na abertura do festival, o responsável pelo evento classificou, muito corretamente, como uma das grandes adaptações, através do olhar de Agustina Bessa-Luís, de "Madame Bovary".
Efemérides à parte, o festival continua o seu caminho, ultrapassando agora a metade da edição deste ano, e o brasileiro Karim Ainouz lançou ontem uma verdadeira opção sobre a Palma de Ouro deste ano. O realizador, de que está em exibição entre nós "Marinheiro das Montanhas", documentário sobre as suas raízes argelinas, abandona o seu território de conforto e assina com "Firebrand" o seu primeiro filme em língua inglesa.
Na sangrenta Inglaterra dos Tudors, Catarina Parr, a sexta e última esposa de Henrique VIII, é nomeada regente durante as suas campanhas militares. Neste papel temporário, Catarina tenta influenciar os conselheiros do rei para um futuro baseado nas suas crenças protestantes. No regresso da batalha, o Rei, cada vez mais paranóico e doente, acusa uma amiga de infância de Catarina de traição e manda-a para a fogueira.
Horrorizada com o seu ato e secretamente de luto, Catarina luta pela sua própria sobrevivência. As conspirações sucedem-se dentro das paredes do palácio e a corte sustém a respiração - será que a rainha vai cometer um deslize e Henrique vai mandar executá-la? Com a esperança de um reino livre de tirania, será ela capaz de se submeter ao inevitável para o bem do rei e do país?
Ainouz dirige os brilhantes Alicia Vikander e Jude Law num impressionante jogo de poder, não caindo no bilhete postal do filme de época, como o insuportável filme de abertura do festival, "Jeanne Du Barry", oferecendo-nos uma nova e íntima visão sobre este período da História. Nosso favorito até agora da competição, opinião sempre carregada de enorme subjetividade, seria no entanto estranho que este filme não fizesse parte do palmarés final. Para confirmar no próximo sábado, dia de encerramento do festival.
Cannes 2023 olha também para uma desejada renovação do cinema africano. É verdade que, como na Europa não se pode comparar o cinema português com o norueguês, a designação "cinema africano" é muito genérica. Mas há algo em comum, com um continente a ressurgir dos traumas do colonialismo, mas a fazer também face a inúmeros governos autoritários, a uma imposição por vezes bruta de cânones religiosos, a uma subordinação da mulher a poderes patriarcais, a conflitos armados sem fim.
O cinema, raras vezes prioridade das medidas governamentais de grande parte dos países africanos, que têm ainda de fazer face a condições climatéricas e de terrino pouco favoráveis, é por vezes encarado com uma certa condescendência. Felizmente, há jovens autores que respeitam o cinema como forma de expressão criativa, e a edição deste ano de Cannes deu já dois exemplos.
Em competição, "Banel & Adama", da senegalesa Ramata-Toulaye Sy, segue as personagens que dão título ao filme. Banel e Adama estão apaixonados. Vivem numa aldeia remota no norte do Senegal. É tudo o que conhecem do mundo, nada mais existe. Mas o amor absoluto que os une vai chocar com as convenções da comunidade. Porque, no sítio onde vivem, não há lugar para a paixão e muito menos para o caos...
Primeiro filme sudanês em seleção oficial em Cannes, "Goodbye Julia", de Mohamed Kordofani, exibido na seção Un Certain regard, é mesmo um dos filmes mais em foco no festival. Na véspera da divisão do Sudão, Mona, uma ex-cantora norte-sudanesa, procura redenção por ter acidentalmente causado a morte de um homem do Sudão do Sul, ao contratar a sua mulher como empregada doméstica. A esperança renasce no cinema africano.