Ano de ressaca e de mudanças, testemunhou uma das mais prodigiosas colheitas da história da música popular - e Portugal não escapou à inspiração.
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Estreias fulgurantes, discos finais e trabalhos de consolidação. Mudanças de paradigma na indústria, no consumo de música e no espírito do tempo. Assim foi 1971, "o ano que produziu mais discos influentes do qualquer outro antes ou depois", escreveu o jornalista inglês David Hepworth em "1971 - Never a dull moment: rock"s golden year", livro que traça um panorama histórico, social e artístico desses 12 meses.
Foi a partir da sua leitura, e também da experiência pessoal, que o radialista Álvaro Costa encontra quatro explicações para esse "freak out absoluto" que foi 1971. "Há uma confluência fabulosa de criatividade, de artistas em diferentes fases da carreira e em diversos géneros musicais. A televisão era ainda limitadíssima, mas a rádio começava a explodir e a música era o grande escape para a juventude." Uma terceira explicação prende-se "com o início da cultura da alta fidelidade". E a última, e mais decisiva, "com a profissionalização da indústria, o investimento no marketing, nos managers, na imagem dos artistas e na generalização dos contratos discográficos".
O disco-charneira nessa mudança é "Tapestry", de Carole King, considera Álvaro Costa. "É o primeiro a impor o LP como formato dominante. Já não se tratava de uma coleção de singles mas sim de um álbum cuidadosamente pensado para uma distribuição massiva e altamente rentável." Carole King detém, ainda hoje, o recorde de artista feminina a manter-se mais tempo no top da tabela Billboard, justamente com "Tapestry". Entre os seus favoritos do ano, o radialista enumera "L.A. woman" dos Doors (o último com Jim Morrison, que morreria de overdose pouco tempo após o lançamento do álbum), "Sticky fingers" de The Rolling Stones, "Yes album" dos Yes, e "What"s going on" de Marvin Gaye (que contribuiu para um ano fértil também no campo da música negra).
o fim da inocência
Mas a "institucionalização" construída nessa época representa também uma perda de inocência, diz Álvaro Costa: "Os músicos já não pensam em mudar o Mundo, apenas em mudar as suas próprias vidas, aumentando a conta bancária". Uma visão parcialmente corroborada por Luís Pinheiro de Almeida, um dos fundadores do jornal "Blitz". "Há 50 anos, foi a ressaca dos "sixties" com o fim dos Beatles e o funeral dos hippies." O jornalista recorda a esse propósito o festim de violência em Altamont, festival de 1969 que foi uma espécie de negativo de Woodstock e Monterey, dominados pela "paz e amor".
A opor-se à ressaca, no entanto, Pinheiro de Almeida encontra novos fôlegos em movimento: "A confirmação de valores individuais como os Beatles a solo e de nomes futuramente clássicos como Neil Young, Cat Stevens, David Bowie, Marc Bolan, Rod Stewart, James Taylor, Joni Mitchell ou Nick Drake".
O especialista chama ainda a atenção para "The concerto for Bangladesh", organizado nesse ano por George Harrison, que viria a definir o paradigma dos concertos de beneficência. E deixa alguns álbuns favoritos: "Who"s next", de The Who, "Meddle" dos Pink Floyd, "Imagine" de John Lennon, e "Wild life", de Paul MacCartney com os Wings. Em tempos de confinamento, vale a pena explorar o legado de 1971.
50 ANOS
A safra portuguesa
Também em Portugal 1971 foi ano de colheita rica, entre estreias e confirmações. O pano de fundo era a crescente contestação ao Estado Novo, cada vez mais expressa nas canções. Destaque-se o trio de álbuns gravado no Château d"Hérouville, nos arredores de Paris. Dali saíram "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", primeiro registo de José Mário Branco, à época exilado em França; "Os sobreviventes", que inaugura a carreira de Sérgio Godinho; e "Cantigas do Maio", de José Afonso, que seria proibido pela censura e inclui o hino do 25 de Abril, "Grândola, vila morena". O ano fica também marcado pelo lançamento da segunda obra-prima de Carlos Paredes, "Movimento perpétuo", e pela estreia de José Cid a solo ("José Cid"), que com a sua banda Quarteto 1111 edita também o single "Ode to the Beatles".