"O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo", um poderoso manifesto de Djaimilia Pereira de Almeida sobre a construção da identidade e as ameaças em seu redor.
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Livro-manifesto que carrega inquietações e perplexidades que extravasam em muito o campo literário, "O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo" encontra a sua verdadeira grandeza, de modo um tanto paradoxal, num elemento que muitos considerarão acessório, mas sem o qual todo o discurso perderia o sentido: a paixão firme de um ser humano - no caso, negra e mulher - pelo ato de contar histórias através da escrita.
A voz que prende o leitor logo a partir das linhas iniciais é a de Djaimilia Pereira de Almeida, autora que, desde a sua estreia em livro, há oito anos, impressionou pela fluência narrativa, mas talvez mais ainda pela forma como resgatou para a literatura portuguesa contemporânea temáticas e ambiências há muito subrepresentadas.
Com uma obra já premiada e traduzida para uma dezena de idiomas, Djaimilia inicia o curto manifesto pelo reconhecimento do "privilégio" que significou para si ter nascido em 1982. "Houvesse eu nascido setenta anos antes, e não haveria lugar para estas linhas, ou qualquer outro dos meus livros", escreve, partilhando "a alegria e a responsabilidade" que advêm dessa mudança.
O suposto privilégio (que, na realidade, é um direito elementar) enunciado logo a abrir vai sendo matizado nos curtos capítulos seguintes, nos quais são expostos os múltiplos resquícios que ainda persistem em redor de uma autora negra, como se escrevesse "perseguida", confessa.
Mas é sobretudo no dia a dia, com sinais mais ou menos encapotados de demonstrações de racismo, que mais se faz sentir a evidência de ser uma mulher negra "num esquema que reservou para nós um único lugar numa geometria"-
Na pertinente reflexão em torno da sua identidade feita nestas páginas, sobram elementos de que a escrita foi um elemento fundamental no processo de descoberta e afirmação de uma voz que, todavia, não tem a veleidade de pretender ser um porta-estandarte de outros. É neste particular que Djaimilia Pereira de Almeida denuncia, de forma convincente, as armadilhas ou falácias que rodeiam a construção identitária, como se, por ser mulher e negra, fosse obrigada, através dos seus livros, a abordar um conjunto de pressupostos supostamente representativos do seu género e cor: "A minha negritude não é terra firme, porto de abrigo. Joga-se na página: campo minado".
"O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo"
Djaimilia Pereira de Almeida
Companhia das Letras