"O meu tio Tudor", de Olga Lucovnicova, foi produzido no âmbito do programa Doc Nomads.
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Se Diogo Costa Amarante não repetiu o Urso de Ouro da Berlinale para curta-metragem, com "Luz de presença", depois de o ter conquistado em 2016 com "Cidade pequena", o cinema português e sobretudo o ensino de cinema entre nós está de parabéns, com a conquista do prémio maior da Berlinale nesta categoria por "Nanu tudo" (O meu tio Tudor), por parte de uma aluna do Doc Nomads, o mestrado em documentário no âmbito do Erasmus, realizado ao longo de dois anos por três escolas, a Universidade Lusófona, a Luca School of Arts de Bruxelas e a University of Theater and Film Arts de Budapeste.
Foi nesse âmbito que Olga Lucovnicova realizou o seu filme, depois de um percurso que passou pela fotografia e por várias outras curtas-metragens e que culmina neste olhar pela família, que se inicia de uma forma cândida e termina em denúncia brutal, mas mesmo assim serena, dos abusos de que foi alvo, aos nova anos, pela figura familiar que dá o nome ao filme.
Olga Lucovnicova nasceu há 30 anos na Moldávia mas, como se percebe numa reunião familiar, tem também raízes russas e ucranianas. "Quanto mais sangue melhor", diz um dos tios, mas é sobre um outro tio, Tudor, que Olga confronta os abusos de que foi alvo em criança, num processo catártico, como fica bem visível pela chuva que escorre pelo seu rosto, no plano final do filme.
O júri, composto pelo artista egípcio Basim Magdy, pela diretora de fotografia austríaca Christine A. Maier e pelo ator alemão Sebastian Urzendowsky, salientou que "a coragem pessoal da realizadora combinada com a sua mestria cinematográfica criam um filme que é ao mesmo tempo poderoso e emocionalmente estratificado".
O Urso de Prata da curta-metragem foi entregue ao filme chinês "Day is done" de Zhang Dalei, enquanto o filme nomeado para o Prémio do Cinema Europeu da categoria foi "Easter eggs" do belga Nicolas Keppens.
Enquanto se tem de aguardar por amanhã para se conhecer o vencedor do Urso de Ouro da competição oficial e o grande prémio da secção Encounters, foram também revelados hoje os prémios da outra secção competitiva, Generations. O júri, composto pela atriz alemã Jella Haase, pelo realizador holandês Mees Peijnenburg e pela realizadora e argumentista alemã Melanie Waelde premiou o filme chinês "Summer blur" de Han Shuai, e o suíço "La mif" de Fred Baillif, com menções especiais a irem ainda para o argentino "Una escuela en cerro hueso" de Betania Cappato, e "Cryptozoo" do americano Dash Shaw.
Uma forte denúncia do neofascismo
Os dois filmes da competição de hoje sublinham a excelente qualidade da seleção deste ano e a dificuldade que o júri, composto por seis vencedores do Urso de Ouro, deve estar a ter para compor o seu palmarés. "Wheel of fortune", do japonês Ryusuke Hamaguchi, que conhecemos entre nós de "Asako I & II", é uma adorável coleção de três histórias de amor, enquanto "Ballad of a white cow", dos iranianos Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam, que é também atriz principal do filme, é um poderoso libelo contra a pena de morte, através da história de uma mulher que, além de ter de lidar com uma filha surda-muda, descobre que o marido, executado há um ano, estava afinal inocente do crime pelo qual fora julgado.
Também do Irão, mas num registo muito diferente do que esta cinematografia nos habitou, e num tom direto e confessional, "District terminal" é outra das boas apostas da secção Encounters, onde pôde também ser visto o experimental "Rock bottom riser", uma por vezes fascinante viagem à astronomia e ao presente e futuro do nosso planeta, dirigida pelo americano Fern Silva, cujo apelido não deixa dúvidas sobre as suas raízes portuguesas.
O grande destaque vai para um título da Berlinale Specials, fora de concurso, "Je suis Karl", do alemão Christian Schwochow. O filme passa-se em Berlim, no seio de uma família que ajuda exilados a entrar no país. Mas um dia, uma encomenda entregue em mão, supostamente para uma vizinha, destrói a casa e Maxi, sobrevivente com o pai por não se encontrar no local, perde a mãe e os irmãos.
Num encontro aparentemente casual, conhece então Karl, um jovem guru de um misto de seita e de movimento político, que a convida para um congresso onde se discute o presente catastrófico do continente e a sua "purificação", face ao que apelidam de completa ausência de soluções por parte dos políticos e das autoridades policiais. Num momento de exaltação, Karl sacrifica-se pela "causa", gerando um movimento internacional que dá o título ao filme.
Como Maxi, a personagem central da história, vamos percebendo onde este Karl nos quer levar, e o filme, construído com forte ritmo e envolvência, torna-se uma denúncia, poderosa, dos neofascismos que vamos vendo pela Europa fora e, aos poucos, também entre nós. Basta comparar discursos que bem conhecemos com os que "Je suis Karl" nos oferece.
Como não há festival que se preze sem um bom filme de ação asiático, o policial de Hong Kong "Limbo", de Soi Cheang, curiosamente nascido em Macau, permite refrescar as ideias, apesar das suas pretensões artísticas, sublinhadas pela escolha do preto e branco. E é numa Hong Kong diferente da que estamos habituados, num submundo em ruínas, que decorre a investigação por parte de dois agentes da polícia, um veterano e um novato, sobre os crimes brutais perpetrados sobre mulheres. Que bom saber que o cinema de ação de Hong Kong continua bem vivo.
O festival tem ainda uma outra seção, Berlinale Series que, como o nome indica, se dedica à divulgação de séries destinadas primariamente ao pequeno ecrã. No conjunto de seis títulos propostos, pudemos ver a brasileira "Os últimos dias de Gilda", em quatro episódios, realizada por Gustavo Pizzi e escrita em parceria com Karine Teles, a atriz principal, uma dupla que já conhecíamos de um filme que por cá passou, "Benzinho".
Esta nova história centra-se em torno de Gilda, uma mulher com grandes dotes culinários, uma espantosa fome de viver e uma vida sexual muito livre, o que entra em choque com a pequena e pobre comunidade onde vive, cada vez mais habitada por falsos moralismos evangélicos. Uma exaltação dos sentidos e dos desejos, a glorificação libertária da vida e uma generosa presença física de Karine Teles fazem de "Os últimos dias de Gilda" um objeto atual e necessária e que se espera poder vir a circular entre nós.