Festival abre 31.ª edição com desacerto de alinhamento emocional e deixa parte do público frustrado.
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O primeiro dia de Paredes de Coura 2024 foi “weird”. Não “weird” como Trump e como JD Vance, cuja estranhez de ideias e propulsões políticas é maligna, mas foi um dia musicalmente esquisito. Pareceu faltar-lhe fatalidade e voltagem, algo que mexesse com a tão necessária atividade elétrica das membranas excitáveis das células musculares esqueléticas, que é para isso que servem os festivais de música - isto é, obviamente, depois de nos revelarem a prescrição com as instruções e explicações para a vida.
Adolfo Luxúria Canibal, o inelutável vocalista letal dos Mão Morta que é um espectador constante de rock, mesmo com um pé fissurado e engesso, como caminha aqui em Coura a furar até às filas da frente, é bastante franco quanto ao dia ”weird”.
“Bom, passei não sei quantas horas e horas de seca até ver um concerto bom que só chegou às 3 horas da manhã”, diz ele a repetir o andamento tão tardígrado dos horários deste ano de Coura. “Mas foi muito bom, um belíssimo concerto, e cheio: Model/Actriz. Deviam ter tocado mais cedo e no palco maior, evidentemente”.
O resto, o resto é desarmónica impressão emocional. Diz Canibal: “O outro, o Andre 3000, é interessante mas não é para aquele local aberto, não é para aquela hora nobre da noite. Não sei qual é a provocação, acho que quem programa o cartaz está maluco”. E continua: “Glass Beams achei uma seca enorme, uma repetição instrumental constante, deviam ter ficado no palco pequeno, assim o tamanho da seca era menor. O resto foi francamente mole ou mesmo mau para mim: o hip hop do gospel do Killer Mike não me diz nada; o soul jazz do Sampha é bonito e bem feito dentro do género, mas não tem verve, não lateja, não há pico emocional - e estes dois, atenção, tocaram no palco principal; e ainda vi os Sababa 5, os piores de todos, pobres e requentados, descarados, copiam os Khruangbin, e são falsos israelitas”.
“Ahh”, torna Adolfo Luxúria Canibal, “e ainda espreitei o George Clanton, achei que era um instigador esquisito, quase de mau gosto, mas não foi de longe o pior”.
“Adoro os DC”
Já na noite hoje, e com toda a naturalidade e urgência, Canibal queria ver as Wednesday - altíssono alt-rock de grande beleza cavernosa que ateou os corações e as tripas de todos com uma versão homérica de “Bull believer” - e os Protomartyr, “que dão tudo em palco”, diz Adolfo, “ e no sábado, claro, os Fontaines DC [1.35 horas], que adoro, e antes, na sexta, os Idles [1.55 horas], que não sei bem se adoro mais ou mais do que os DC”.
Bandas de sol
Hoje, os Gilsons, trio literal de um filho e dois netos de Gilberto Gil, que encheram de sol, MPB e afoxé a encosta do palco Vodafone, e chamaram (muito) mais gente do que o psico-rock instrumental dos Glass Beams ontem à mesma hora, fizeram uma coisa bonita - e necessária. Foi durante “Vento alecrim”, uma canção sobre a florescência do amor, e José Gil interrompe o cantar para dizer: “Gente, está alguém se sentindo mal ali, galera da produção, ajudem” , e no fim depois do verso “onde você for eu vou”, voltou à espectadora desvalida já retemperada de águas e da quebra ocasional das tensões e redisse: “Água, gente, bebam muita água!” - e a encosta eclodiu numa prosa de palmas.
Por último, os primeiros: os Quadra, projeto pop primaveril de Braga, abriram hoje o palco grande para uma festa figurada de bolas de sabão e superação solar. Cheios de prazer com os seus sons borbulhantes, serpentinos e pós-punk, à frente do palco deles, no pátio da intensidade onde estão sempre os verdadeiros fãs, dançou-se com a felicidade das certificadas matinés imortais.