TV On The Radio conseguem manter a multidão na mais populosa primeira noite de sempre. Não houve notas artísticas acima do 3 em 5 nos atos ao vivo. Mas o ambiente bate claramente a escala
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As deflagrações lentas dos "shoegazers" Slowdive e a expansão do seu "dream pop" dos anos 90 foram uma das imagens mais fortes da primeira noite de Coura 2015, que encerrou com TV On The Radio no palco principal a tocarem exatos 60 minutos e um encore que estava previsto. Aí a imagem foi outra e a massa gigantesca da multidão que aqui está sobrepõe-se a tudo o resto: nunca ninguém aqui viu, em 23 anos de festival, tanta gente numa primeira noite, já não é só impressão, é facto - e hoje, quinta-feira, o cenário será ainda mais preenchido e estaremos engarrafados até às árvores à hora dos Tame Impala.
Apesar de ser de consumo difícil para massas, o art-rock dos TVOR e o novo álbum "Seeds", pela sua potência cafeinada e pela velocidade de Tunde Adebimpe, o carismático vocalista do quarteto de Brooklyn, muito bom em duplos tempos e a erguer-se do murmúrio de tenor até aos falsettos nervosos, parece ter agradado à maioria. O que não deixa de ser surpreendente para este tipo de rock mais laboratorial do que sensorial, mas ninguém arredou pé e a massa manteve-se sem desmobilizar, e pediu mesmo o regresso da banda no encore.
Os da frente habitaram o concerto mais animadamente, entre o pó dourado, e tornou a haver mosh e surfistas a levantar pernas entre os braços - ainda que isso parecesse ser mais um resultado do bom espírito e da felicidade de estar em Coura do que uma reação direta aos riffs e loops daquela música. Mas ainda não dançamos com o coração - talvez isso tenha sido conseguido no mix house-trance-techno do espanhol DJ Fra, quem sabe?, depois das quatro ele continuava a ecoar ao longe.
Até à meia-noite da primeira noite, a nota artística de Coura continuou sem ascender ao sólido quatro, a não ser em certos momentos da torrente de guitarras de cristal dos Slowdive, em que eles faziam jorrar pequeninos tufões intermitentes das três guitarras e levantavam a parede de som que envolvia a encosta e toda agente parecia atuar em câmara lenta. Por outro lado, talvez o "shoegaze" já só seja realmente importante enquanto memória, e só seja emocional para quem tem mais de 40 anos, o que deixou os de idades daí para baixo só vagamente interessados a balançar, a metade da encosta de cima sentada com casais e sombras alongadas quando a luz branca baixava depois das explosões lentas de som. Mesmo assim, antes dos TV On The Radio, Coura manteve-se com simpatia no três em cinco de nota artística e Laura-Mary dos Blood Red Shoes como a mulher mais bonita ou mais sexy da noite - e do dia, se estivermos a falar só do palco (sem desprimor para Rachel Goswell dos Slowdive, que tem uma bonita voz de fraseados loiros e era muito mais bonita do que Liz Fraser dos Cocteau Twis nos anos 80).
Há outra coisa que já é evidente: se os Iceage, que tocam hoje, quinta-feira, na tenda pequena enquanto o Tigerman estiver a ocupar o palco principal, isso poderá ter sido um erro de casting, sem desprimor para o Tigerman e para as suas belas fotografias de camas desfeitas. E tudo a favor do Tigerman, é só que o novo disco dos Iceage é demasiado bom e demasiado enérgico e sardónico para o vermos pela primeira vez a explodir ao vivo num espaço pequeno.
À meia-noite, o festival começou há cinco horas, somos muitos mais do que em qualquer outra primeira noite que eu tenha vivido aqui (é fácil perceber a enchente na forma de subir e descer a encosta e nos encontrões quando vamos ter com os amigos da frente) e nem era preciso tanto tempo para percebermos que este é o melhor resort de rock do país. É o contexto, é relevante, a maioria de nós quando aqui vem fica aqui e por isso é que dizemos que o coração fica sempre em Coura porque a memória vive mais tempo ali.
Já houve mosh em Coura
Gala Drop e Ceremony abriram os concertos e já se fez mosh. Primeira impressão: está mesmo mais gente do que noutros anos e há um ecrã gigante no palco para nos vermos.
Não se explica mas é sempre assim todo os anos: a primeira vez que se pisa o relvado inclinado de Coura e o povo já lá está e há música a ecoar, a pele encrespa-se toda como a da galinha num arrepio. Não importa sequer qual é a banda ou qual é a música; é o corpo a responder à sua ressaca anual de tantos dias longe deste habitat natural retemperador de rock.
Escrupuloso e bem britânico, o Vodafone Paredes de Coura 2015 começou às 19, a exata hora apontada - e vai ser sempre assim, previnam-se os típicos mediterrânicos todos, porque quem se distrai e atrasa arrisca-se a perder para sempre concertos.
Duas novidades durante a atuação dos Gala Drop, quinteto sulista da editora Filho Único e da trupe ZDB que trouxe os seus instrumentais de tapetes kraut-rock cheios de groove: este ano, o fundo do palco principal não está aberto para a luz verde das árvores (mas tem um grande ecrã que nos filma a todos em cinemascope ou mostra grandes planos dos músicos no palco a tocar); e já cá está muito mais gente do que estava a esta hora de sol ainda alto em todos os outros anos anteriores.
A seguir vieram os Ceremony e a sua "power violence" (mas leve, mas leve) cheia de punk levemente gótica. O quinteto americano, nomeado a partir de um single dos Joy Division, mede-se na entrega do seu vocalista, Ross Farrar, que parece um fundista a correr sem sair do lugar e a meio do concerto todo ele, que está de tronco nu, é só pele a reluzir de suor - tem uma gigantesca tatuagem que lhe enche o peito todo, uma mancha escura ameaçadora em forma de borboleta ou de nódoa de rorschache.
"Este é o nosso último show da tournée", disse Farrar, "estamos muito cansados; amamo-vos a todos", e atacou "The separation", uma canção que fala do amor e da fratura da separação. A canção, muito rápida e seca e encadeada levantou algum mosh (mas pouco, mas pouco) e já viu um ou dois "crowdsurfers" a nadar nos braços da multidão mais entusiasmada da frente.