Turnstile e The Comet is Coming foram os números altíssimos do 3.º dia do Vodafone Paredes de Coura: um foi hardcore e o outro space-jazz. Mas houve outras luminárias de bom tom e uma nova constatação: há aqui determinados momentos em que os espectadores estão sempre mais bonitos.
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Imediatamente no fim do concerto dos Turnstile, depois de baixar a poeira e a rotação do coração, há ali uns minutos, dois ou três ou dez, em que os espectadores do bloco maciço da frente frenética estão, é uma coisa que salta à vista, basta que os vejamos de perto, muito mais bonitos. Muitos deles ainda têm as faces ruborizadas do estímulo e da torção dos sorrisos esperneados, e dos seus saltos sem peso no ar. Continuam claramente debaixo do efeito dos "mágicos cansaços", uma sulfura que advêm da entrega física e altruística total à banda e à música que acabaram de ouvir. E vemos emanar das suas caras algo muito concretamente - além de vermos as evidências da diaforese, claro está -, e essa misteriosa efluência é muito fácil de decifrar: estão sob o efeito líquido da bem-aventurança, da felicidade completa, coisa que já é eterna na sua memória, como acabam instantaneamente de descobrir.
Mas há ainda algo mais, muito menos misterioso, que também ali se vê: uma data de espectadores que ali cirandam, olhos desmedidamente abertos, caras viradas para o chão batido, curvados como pinguins com frio, a esquadrinhar a relva puída. O que é que estão a fazer? Estão à procura das carteiras, dos óculos, dos telemóveis, às vezes até das próprias cabeças que no fragor da dança - houve mosh, rodas-punk, crowdsurf, o cardápio todo desfolhado - acabaram de perder.
Como continuam embebidos em felicidade, coisa que é coletiva e contagiosa, todos os que estejam ali, sejam absolutos estranhos, amigos antigos, compadres, compinchas ou comparsas acabadinhos de fazer, toda a gente desata a ajudar e a procurar, acendem-se logo várias lanternas de telemóveis, os feixes das luzes cruzadas a varrer, e também isso é muito bonito de se ver.
"Toma, encontrei-os", diz um amigo ridente para outro, ambos ainda a suar, e estica o braço para lhe entregar uma coisa preta de massa disforme que o outro, que não reage, não se mexe, está todo apático, não parece querer receber. "São os teus. Eu sei que lhes falta esta parte e mais esta e que estão todos tortos, mas são os teus, toma!", insiste ele de braço estirado com aquilo na mão. O outro, que está em tronco nu e parece fumegar da pele, cruza agora os braços, põe-se todo seráfico, fecha a cara ou finge que a fecha, fita-o empedernido e dois ou três segundos depois, escancara-se a rir, escangalham-se agora os dois, enquanto tenta pôr na ponta do nariz, é um equilíbrio difícil, os despojos daquilo que antes do concerto eram uns belos óculos de sol Ray Ban.
"Que puto de concerto, meu puto! Concertaço!", e os dois saem abraçados, começam a subir a colina e desaparecem internados no meio da multidão.
"Se isso te faz sentir vivo, bem, então eu fico feliz"
Ao terceiro dia do 29.º Festival Vodafone Paredes de Coura, há outro concerto a elevar-se para lá dos píncaros, capaz de ombrear com o enorme, imenso, gigante espetáculo titânico dos Idles da noite anterior: Turnstile, a nova sensação punk-rock-hardcore de Baltimore, um festim completo e holístico, muito teso, mas agora mais jovial.
Brendan Yates é o líder do quinteto e desse acontecimento maior do hardcore. Ele terá consciência da importância do facto: "Se isso te faz sentir vivo, bem, então eu fico feliz por poder ajudar", grita Brendan, 34 anos, que baila como um pugilista quando os pugilistas dão três passos dançados para trás, em "Blackout". É um single do espetacular quarto álbum dos Turnstile, "Glow on", atesta a Pitchfork, que vê ali uma sinopse de toda a experiência dos Turnstile: há acordes robustos, um gancho de rock alternativo incrivelmente brilhante, baterias marciais e um fio de funk latino. A canção, que é das mais longas das 14 desse novo disco, dura dois minutos e cinquenta e três, só uma delas passa os três minutos, e só por um segundo, "Blackout" também é sobre querer ser, nem que seja só por um instante, o centro das atenções antes de morrer.
Velocidade e força, clarões a estrepitar, pontapés atirados ao ar, berros, rugidos, bramidos, eles estão sempre a saltar, a voz é um revólver acabado de desfechar, esta banda é um bando de pirómanos, são os cinco profissionais da combustão espontânea - e ninguém estranharia certamente se eles desatassem ali em palco à nossa frente efetivamente a arder. O mosh foi fortíssimo, vários casacos desataram misteriosamente a voar sozinhos, até as palmas levantavam pó.
"Vamos ficar juntos para sempre", propõe o Brendan e depois ataca "Move thru me", uma canção de amor escaldado, uma canção de tudo ou nada, uma canção que é uma súplica: "Move-te através de mim, sê tudo aquilo que eu vejo, sê aquilo que eu sangro, já é hora de me curares a cabeça ou então de me deixares para sempre em pedaços".
Depois vem a "Holiday", a batida maciça a fazer lembrar os melhores cúmulos dos Sleigh Bells (mas aqui a inverter a proporção de metalcore para indie pop), a "Real thing", a "Big símile", a "Underwater boi", a "TLC (Turnstile love connection)", uma canção bombástica que contém os princípios gerais de onde de retiram ou inferem os princípios mais específicos e particulares do som Turnstile: acelera, pára, torna a speedar, tudo isto muito denso e comprimido, muito alto, capaz de sugar dali todo o ar.
"Obrigado", disse o Bredan que trazia vestida uma t-shirt branca com letras pretas a dizer "Thank you". "Obrigado por virem ver-nos. Obrigado por tomarem conta uns dos outros. Obrigado por tomarem conta de vocês. Obrigado por serem vocês mesmos", e o público aplaudiu delirado. "Preservem isto, agarrem-se a isto. Nós amamos-vos".
O cometa não está a caminho, ele já chegou
Flexuoso como um exame elétrico das actividades do coração, capaz de evoluir nas suas reprises mas também no nervo novo, o Festival Vodafone Paredes de Coura, três anos depois de todas as paragens pandémicas, está a transformar-se e continua a expandir-se. Está a saber fazer uma coisa preciosa, preciosíssima: sem perder a identidade do seu molde primordial, consegue acrescentar ao corpo do rock novas camadas, outros géneros, outro lustro matricial e com isso está a rejuvenescer.
Depois do concerto de palato especulativo abstrato ao 2.º dia dos Bad Bad Not Good, um neo-jazz que todos respeitaram mas que nem para todos foi cabal, ao 3.º chegou uma mais potente e muito mais satisfatória variação das inclassificabilidades do novo jazz: The Comet Is Coming, trio londrino que incorpora na raiz elementos de jazz, eletrónica, funk e rock psicadélico - e que em palco pareceu uma "seance" de encantamento para deuses cósmicos ou então a preparação para um lançamento espacial.
Danalogue, Betamax e King Shabaka são o "power trio" de teclados, bateria e saxofone, este último no epicentro da cena, a agigantar os outros dois. Juntos, hasteiam o seu estilo híbrido de space jazz eletrónico que traz um groove pesado e irresistivelmente dançante à situação. Simultaneamente, The Comet Is Coming tem a mesma relação musical instintiva de uma banda de jazz tradicional - cada músico existe separadamente, mas sincroniza-se sem esforço com cada injeção de ritmo ou quebra de energia. O espetáculo foi psíquico e cinético, docemente ruidoso, foi febril e foi fantástico.
E houve sempre crowdsurf, naturalmente
O 3.º dia viu ainda mais duas ou três potentes luminárias, pelo menos. Os Parquet Courts, banda de Austin Brown e dos irmãos Savage que injecta à sua marca de pós-punk inexpressivo muito rock bruto, funk empolgante e hardcore americano primitivo - foi uma festa, naturalmente. Os Molchat Doma, banda bielorrussa que canta em bielorrusso e aporta oscilações de graves e proeminentes teclas penetrantes à gótica sintética da new wave/cold wave/dark wave, são muitas ondas e foram muito festejadas no seu céu de românticos cinzentos cintilantes (o público de Coura tem sempre demasiadas saudades dos Joy Division, banda que quase seguramente nenhum dos mais de 20 mil espectadores presentes alguma vez viu ao vivo, este escriba incluído). E L"imperatrice, um sexteto parisiense de viajantes pop intergaláticos que está a reinventar o retrofuturismo disco de 1970 e a espetá-lo firmemente no presente. Fecharam a noite do palco maior com uma festa freak-chic de cores unidas garridas, carregada de funk, cheia de groove, bons baixos e corações kitsch luminosos que os seis músicos traziam cravados no peito e acender e a apagar - e também aqui houve crowdsurf, naturalmente, é o novo desporto diário obrigatório de quem cá está, mesmo que seja ao calhas, como calha muitas vezes, porque aqui ninguém facilita, ninguém falta aos treinos, a vida são dois dias e já só faltam outros tantos para o festival acabar.