Cantor brasileiro atua no Porto esta quarta-feira: vai rever em palco todo o seu passado, mas também mostrar-nos o futuro. Em entrevista ao JN, Criolo detalha o doloroso processo criativo, e existencial, do seu disco "Sobre viver".
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A força do rap comanda a vida de Kleber Cavalcante Gomes, cantor e compositor brasileiro reconhecido como Criolo. A festejar 50 anos, chega a Portugal com “Criolo50”, digressão em que revisita todo o seu percurso musical. Quarta-feira, o criador de “Sobre viver” atua na Casa da Música, no Porto, e, além de rever carreira, também vai antecipar o que aí vem. Criolo passará ainda, no dia 6, pelos Encontros de Serpa.
O que mais o surpreende nos seus 50 anos?
A força do rap na minha vida. Só agora, aos 50 anos, percebo o quanto foi transformador. O rap deu-me voz, deu-me existência, a mim e ao meu bairro. Acabou quebrando um hábito de apenas servir, apenas ser um número, ajudou-me nessa tomada de consciência de que eu existo e tenho uma história.
O seu percurso tem mais estilos musicais: como surgiram?
Antes do rap existir na minha vida, antes dos 11 anos existia o samba, o forró, a música do Ceará, música do Nordeste que sempre esteve presente na minha casa. Os meus pais são do Ceará, então, em casa, essa música e literatura sempre foram muito fortes.
Escreve muito sobre racismo, desigualdade e violência. Por quê?
É um desabafo natural e dolorido também. Nós nascemos na desigualdade, somos fruto de uma resistência contra a desigualdade. Somos imigrantes dentro do nosso próprio território. Num desabafo poético, essas questões aparecem, não é uma regra, às vezes a dor é tanta que queremos cantar sobre a prosperidade – para ver se ela vem. Mas é o território que fala, é o povo que inspira. É natural.
Sente necessidade de dar voz a quem ainda não a tem?
Antes de tudo, acho que é um grito daquele garoto de 11 anos, que não sabia se voltaria da escola porque era tudo muito violento. Ao cantar, escrever e partilhar esses pensamentos, percebemos que outras pessoas se identificam. Afinal, queremos o mesmo, queremos sorrir, que o dia seja melhor que o anterior. O rap, no Brasil e noutros lugares, é uma voz forte e sagrada.
“Espiral de ilusão” e “Sobre viver” mostram a sua versatilidade: como se reinventa?
É o reflexo do território. Se falta água, escola ou hospital, isso influencia o som. O Brasil é imenso, e essa diversidade está na nossa música. A mistura de ritmos é consequência da vida que levamos.
Colaborou com grandes nomes da música: o que procura nesses encontros?
Na maioria das vezes, tenho a sorte e a alegria de ser convidado. O que fiz é resultado de muitos músicos incríveis que investiram a sua energia, o seu amor, as suas vivências e me ajudaram a construir tudo.
Como foi trabalhar com a sua mãe no disco “Sobre viver”?
Foi muito forte. “Sobre viver” nasceu na pandemia e é um álbum que traz muita dor, que traz um desejo de levar algum tipo de mensagem para as pessoas. Eu perdi a minha irmã na pandemia, perdemos muita gente, estas músicas são um grande desabafo, falam do sonho da minha mãe de ter uma filha e de como esse sonho foi interrompido pela negligência. Esse disco é um dos mais dolorosos da minha vida, estou tentado entender quem somos depois disso tudo.
O que representa este regresso a Portugal?
É um presente. Fui convidado, e isso enche-me de gratidão. As canções mudaram e eu também, mesmo músicas com 20 anos, 30 anos já são outras, eu também já sou outro. Cada concerto é inédito e é algo que quero viver com o público.
No concerto do Porto vai viajar ao passado ou projetar o futuro?
É um pouco de futuro, sim. O espetáculo está sempre em transformação. A música escolhe como quer ser apresentada, nós só temos de estar atentos para entender os seus pedidos. A indústria não pode ditar o que a arte faz, quero sempre trazer algo novo, por mais subtil que seja.
Que mensagem deixa ao público português que o vai ver pela primeira vez?
Gratidão. São muitos os artistas que merecem atenção, então, ser escolhido enche-me de responsabilidade. Escutem os discos, conheçam a história e vamos criar uma história juntos. Essa noite de 4 de junho tem tudo para ser uma noite histórica.