A crise da habitação sobe ao palco da Casa das Artes, em Famalicão, sexta-feira e sábado (21.30 horas). “Uma rua de cada vez”, da jornalista Mariana Correia Pinto, leva à boca de cena “inquietações” com a casa inacabada da democracia.
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A protagonista da peça, Amélia, é “uma ativista da habitação” inspirada numa personagem da vida real, Maria de Fátima, uma mulher “que é um romance”. Portuense nobre, e leal a um desejo do pai no leito da morte, cruzou-se no caminho de Mariana Correia Pinto numa reportagem para o jornal "Público" sobre um programa municipal de recuperação de ilhas degradas do Porto, em 2017.
A proprietária viu no "Habitar Porto" a solução para o problema da degradação das 12 habitações da ilha que lhe deixara o pai, sob jura de não as vender. "Queria que fossem para pessoas que não têm direito à habitação", contou a jornalista e dramaturga. Três anos depois, com o projeto municipal ainda parado, vivendo com algumas carências, Maria de Fátima foi abordada por dois italianos "bem apessoados" que lhe ofereceram um valor milionário pela ilha, na rua de São Vítor. Recusou sem pestanejar.
“Enraizei-me na minha palavra”. A razão de Maria de Fátima, “uma mulher que disse não” a um montante elevado e optou pelo bem comum, ecoa na peça e na autora. “Até onde cada um de nós resiste? Até onde vão as nossas convicções?” As interrogações de Mariana Correia Pinto sobem ainda ao palco pela boca de um sobrinho de ficção da protagonista. “Quantos de nós por dois milhões não vacilaríamos na nossa ética?”
Maria de Fátima “decidiu, mesmo com muito poucos recursos financeiros, que queria fazer alguma coisa, ajudar quem não tinha casa ”, lembra Mariana Correia Pinto. “Esta história é um símbolo de resistência, cada vez mais difícil de ver na sociedade atual, face à forte pressão imobiliária e à falta de esperança das pessoas”, diz a autora.
"Há aqui uma prova de que é possível e que esta luta não é dos outros, não é só do Estado, é de todos individualmente", acrescenta a jornalista e dramaturga. “A dona Fátima é aquilo que Abril significa, o coletivo em vez de individual”, acrescenta.
“A utopia realizável”
A autora encontrou nesta mulher, de corpo debilitado mas firme nas convicções, “a utopia realizável” que Abril não concretizou. “Habitação é um direito que não está conseguido”, diz a autora, que obteve uma bolsa da DGLAB para esta incursão no teatro.
“Uma rua de cada vez” tem encenação de António Durães e Luísa Pinto, que também interpreta. O elenco conta ainda com Cláudio Henriques e Gabriela Amaro. Com música de Cristina Bacelar, é uma coprodução da Narrativensaio-AC.
Com uma duração de cerca de duas horas, peça estreia-se na sexta-feira e sobe novamente ao palco da Casa das Artes no sábado, Dia Internacional da Mulher. Segue depois para uma digressão nacional, com apresentações já marcadas para Estremoz (15 de março), Lisboa (29 de março), Moita (5 de abril), Bragança (16 de abril) e Lousada (6 de junho).
Saltar a barreira do jornalismo pelo teatro
Mariana Correia Pinto conta que a ideia lhe foi surgindo, que se insinuou aos poucos no dia-a-dia de uma jornalista que vive a cidade. "Havia uma certa inquietação minha, de alguém que encontra muitas pessoas que não têm uma habitação, uma casa digna, que, no fundo, significa que não têm acesso a uma democracia plena", disse.
“A dada altura parecia que o jornalismo não me chegava para contar estas histórias”, acrescentou a autora, que encontrou no teatro a forma de passar a barreira do trabalho jornalístico, que lida com factos. “Queria mais, tocar mais a emoção das pessoas de uma forma que o jornalismo não permite”, explica a autora, que acrescentou outra personagem ficcionada, uma cuidadora, no início dos 30 anos, que nunca teve uma casa ou um emprego estável, que foi toda a vida duplamente precária.
A história de Maria de Fátima, ou Amélia no palco, é mais do que a crise da habitação. É sobre valores. "Será que a nossa vida boa é possível se o do lado não estiver minimamente bem?" Mariana Correia Pinto responde à pergunta com mais questões. "Qual a importância dos nossos gestos individuais? Qual a papel que nós cidadãos e à nossa escala, no nosso prédio, na nossa rua, na nossa cidade, podemos ter para transformar o sítio onde vivemos?"
Segunda experiência como dramaturga, depois de "Anónimo não é nome de mulher", em 2022, “Uma rua de cada vez" tem um cunho de "inquietação" e de revolução. "Às vezes as grandes causas paralisam-nos, impedem-nos de avançar", lembra Mariana, adiantando sugestões para tentar realizar a utopia. "Como mudamos a nossa cidade? Uma rua de cada vez. Como mudamos o mundo? Uma rua de cada vez..."