
"O Lázaro do Porto" faz parte da trilogia que Cristina Norton dedicou à História de Portugal, também composta por "O Segredo da Bastarda" e "O Guardião de Livros"
Nuno Sousa Dias (direitos reservados)
Duas décadas depois da edição original, Cristina Norton regressa a "O Lázaro do Porto" para retratar a turbulência vivida em Portugal nas primeiras décadas do século XIX. Em entrevista, a autora luso-argentina lamenta que a Humanidade persista na manutenção de erros, ignorando as lições que a História concede.
Já lá vão várias décadas desde que Cristina Norton trocou a Argentina natal por Portugal., país pelo qual se apaixonou, antes de mais, pela sua cultura. Parte desse fascínio está plasmado nos livros que tem publicado sobre o país, de que "O Lázaro do Porto ou O Triunfo dos Liberais" é um dos principais exemplos.
Através do percurso de um homem que, por força de circunstâncias fortuitas, atinge uma dimensão mítica, a autor de "O afinador de pianos" procurou demonstrar a efervescência de um período histórico que, bem vistas as coisas, considera que não está assim tão distante, afinal, dos nossos tempos. "Com outros rótulos ou nomes, continuam a existir em Portugal e na Europa as mesmas divisões", defende.
O que a fez regressar, mais de 20 anos depois, ao "Lázaro do Porto"?
A história por trás do texto. Começou por ser uma ideia para um dos contos, de uma coletânea a ser publicada durante Porto Capital da Cultura que mandei a editora Asa. Gostaram muito do tema e pediram-me para escrever uma novela com 80 páginas, para a chancela Pequenos Prazeres. Acontece que tive uma proposta da nova editora Temas & Debates, dirigida por Maria do Rosário Pedreira, para publicar o livro assim como estava. O próprio Manuel Valente disse-me para aceitar. Ora, na pesquisa que tinha feito, apaixonei-me pela riqueza de situações que não cabiam naquele limite. E no ano passado, achei que tinha chegado o momento de contar o resto.
A reescrita incidiu em que valências sobretudo?
Além de momentos históricos relevantes, pessoas que se destacaram nessa luta. Se algumas personagens são inventadas, devem ter existido com outros nomes, pois todas as circunstâncias se baseiam em factos reais, como a coragem das mulheres do Norte ou o reino nos Açores, por exemplo.
Como foi esse reencontro com uma obra que escreveu quase no início do seu percurso?
Há reencontros felizes e este é um deles. Repare que muitas cenas não foram alteradas, continuavam a ter a carga emocional necessária. O tom e a musicalidade das frases eram bons, a limitação de espaço tinha tolhido o livro e ele merecia essa libertação. Eu também.
Já não é a primeira reescrita que faz de um romance. Acha que um livro nunca está verdadeiramente terminado?
Tento não reler os meus romances depois de publicados, porque não resisto à tentação de acrescentar. A mudança para a LeYa e a reedição de dois livros é que me levaram a conseguir incorporar pequenas alterações. Há duas histórias com as quais me identifico: uma de um pintor de século XIX a quem proibiram a entrada no Louvre, porque chegou a mascarar-se para retocar os seus quadros. Outra de García Márquez que decidiu levar de presente a um amigo uma primeira edição de "Cem Anos de Solidão". Durante a viagem de comboio, não tendo mais nada para ler começou a folheá-lo e o amigo acabou por receber o exemplar com muitas correções a lápis.
Embora Lázaro seja uma criação sua, procurou acrescentar a esta sua criação elementos de algumas figuras históricas?
A maioria são históricas, lembro-me que na altura da primeira edição muitas pessoas pensaram que ao nomear o Dr. Gomes estava a referir-me ao presidente da Câmara do Porto em 2000 e não ao médico de 1830... Nesta versão acrescentei outras figuras que não apareciam antes.
A pesquisa para este livro passou certamente pela leitura de várias obras sobre este período histórico em concreto. E sobre o Porto, um dos protagonistas do livro, como procurou certificar-se de que a cidade representada no livro é a mais verosímil possível?
Li dezenas de livros, mas também teses de doutoramento, cartas da época e peças de teatro para escrever os diálogos; vi muitas gravuras, pinturas e esboços feitos por quem viveu o cerco; glossários e estudos de farmacologia da época; vestuário, costumes, receitas de cozinha. Essas centenas de fotocópias e anotações ajudaram a sentir-me naquela época e inspiraram-me.
Em termos de escrita, o livro alia influências que não nos habituamos a encontrar no mesmo livro: as hispano-americanas, de um lado, e as camilianas (e de outros autores portugueses do século XIX). Essa fusão nasceu de um esforço deliberado da sua parte ou só se apercebeu quando concluiu o livro?
Camilo, Aquilino, Alexandre Herculano, Garrett e muitos mais, foram autores que li para conhecer a literatura portuguesa (a brasileira já estava publicada na Argentina) e melhorar o meu português, muito antes de começar a escrever na vossa língua. O estilo é meu. Naturalmente que me devem ter influenciado os escritores argentinos, espanhóis, russos, alemães, franceses, italianos, etc. Fui uma criança muito curiosa e uma leitora voraz, a juventude já lá vai, mas a curiosidade e a necessidade de ler mantêm-se.
Pelo seu lado mais folgazão, vê este 'falso' Lázaro como um homem sem qualidades, como já o descreveram?
Todas as pessoas têm defeitos e qualidades. Ele tem qualidades, mas é um homem do seu tempo, um falso 'dandy'. É trabalhador, independente e putanheiro. Ainda hoje existem homens assim.
O bicentenário da Revolução Liberal foi assinalado há relativamente pouco tempo. Crê que foi uma efeméride bem aproveitada para tornar este acontecimento histórico um pouco mais conhecido?
Acho que não teve o destaque que merece. O triunfo do liberalismo foi muito importante nessa época, poucos foram os países que aderiram a constituições na Europa no século XIX. Acho (é uma opinião minha), que com outros rótulos ou nomes, continuam a existir em Portugal e na Europa as mesmas divisões.
Embora seja fácil apontar vários ensaios sobre a Revolução Liberal, não há tantas aproximações ficcionais a este tema como isso. O que pode oferecer a literatura para atenuar o fosso ou a distância que separa os cidadãos de hoje de acontecimentos históricos passados?
Reconheço que não é fácil escrever livros como este. A tentação de narrar todos os acontecimentos é grande, mas seria um manual de História, tive de cortar muitas páginas e depois de tanta pesquisa temos pena de deitar fora 70% do trabalho de investigação.
O que ajuda a ler os meus livros é uns grãos de picardia, uma pitada de sexo, o riso, umas lágrimas, aventura, amor e loucura. Estes temas são sempre atuais.
Embora a ação do livro decorra num ambiente violento, procura contrapor esse lado mais duro com elementos humorísticos ou pícaros. Não acredita que a guerra eclipse tudo à sua volta, até os resquícios de humanidade?
Tudo não, ainda que todas as guerras sejam brutais e levem a fazer coisas impensáveis em tempos de paz, há sempre momentos de humor. Nos campos de concentração os judeus inventavam as melhores anedotas sobre eles próprios, as mulheres trocavam receitas de cozinha com os mais sofisticados ingredientes, rir sobre si ou as piores circunstâncias é um antídoto para suportar as cruéis provações.
Reconhece no momento que vivemos atualmente várias semelhanças e pontos de contacto com os factos históricos narrados no livro?
Há semelhanças com os conflitos atuais. O poder, a conquista de territórios, os abusos, a tirania, a destruição, a fuga de milhares de pessoas nas piores condições, são as mesmas vividas pelos liberais na época do Lázaro do Porto.
Acredita que a Humanidade aprende com os erros cometidos noutros momentos históricos?
Não aprende, porque somos poucos os que nos lembramos do que foram as duas grandes guerras do século XX. Haverá sempre dominadores e dominados, o homem é o animal mais feroz porque não mata o seu semelhante por necessidade de se alimentar. A iliteracia não ajuda, quem não lê, desconhece a História, não sente nem vê os sinais que antecedem as catástrofes. Ninguém reagiu com a anexação da Crimeia, no entanto foi o prenúncio do que está a acontecer.
A decisão que tomou de viver em Portugal, como já disse anteriormente, teve muito que ver com a paixão pela cultura local. Só mais tarde se apercebeu plenamente da riqueza também da sua História?
A minha curiosidade levou a interessar-me pela vida, costumes, culinária, linguagem, História dos países onde vivi e não só. Conheço todo Portugal e a sua História é fascinante. A minha trilogia que começa com "O Segredo da Bastarda", continua com "O Guardião de Livros" e acaba com "O Lázaro do Porto ou O Triunfo dos Liberais", é a prova desse interesse e amor pelo país em que vivo há dezenas de anos e no qual criei raízes e quatro filhos, oito netos e um bisneto.
Desde que publicou originalmente o "Lázaro do Porto" até hoje já escreveu vários outros livros. É muito diferente a sua visão da escrita e da literatura da que tinha na altura?
A diferença pode estar na minha atitude. A idade torna-nos mais seletivos, mais exigentes, exijo mais dos autores que leio e da minha escrita. Se não encontro o ritmo e a musicalidade num texto que estou a escrever, não continuo, deito-o fora. Há livros que recomecei a escrever várias vezes até encontrar o tom certo, por isso demoro alguns anos a acabar um romance. Há uma grande mudança no mundo literário e da edição, restam poucos editores independentes, quase todos devem obedecer às leis do mercado e essas leis são diabólicas.
O ensino da escrita criativa é uma das suas paixões, tendo até desenvolvido o seu próprio método. Quais os seus principais traços distintivos?
O humor, os jogos com as palavras, ensinar que o nosso corpo é um repositório de histórias, que todos temos muito para contar. Libertar-nos das amarras que nós próprios pusemos na nossa mente, a autocrítica.
Entre Portugal e a Argentina, em termos históricos e culturais, há mais em comum do que poderíamos pensar?
Os argentinos tiveram a sua independência e constituição também no princípio do século XIX. É um país latino, e as semelhanças são muitas. Portugal é um lugar que sinto como se fosse meu, onde gosto de viver hoje. Mas a minha experiência de vida desde que desembarquei dava para dez entrevistas, cheguei numa época cinzenta e hoje brilha o sol.
