Na segunda parte da entrevista ao "Jornal de Notícias", o escritor e editor D. H. Machado aborda as mudanças profundas a que o Mundo tem assistido nos últimos anos e revela algum ceticismo pelo impacto da tecnologia no pensamento humano.
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Trocou a advocacia pela escrita e edição, numa decisão que, embora arrojada aos olhos da maioria considera ter sido a mais acertada. D. H. Machado, autor de obras como "Eliot" ou "Heathcliff", defende a importância da utopia e da imaginação num mundo onde a vertigem tecnológica está a empobrecer cada vez mais a dimensão humana. "O tempo, o silêncio e o ato de estudar e aprofundar conhecimento são bens cada vez mais raros, mas essenciais ao desenvolvimento da humanidade e do seu pensamento", argumenta o poeta, de 48 anos, que dirige a chancela The Poets and Dragons Society.
Ser poeta-editor é uma duplicidade curiosa, porque, se o primeiro se move sobretudo num plano meramente literário, o segundo confronta-se com outro tipo de constrangimentos, a começar pelo mercado editorial em que está inserido. Como lida com esse antagonismo?
Não os considero antagónicos. São caminhos distintos, que não se intercetam. A escrita é uma atividade de criação, romântica, que me completa de uma forma muito idêntica ao amor, à paixão arrebatadora que nos preenche e humaniza. Ser editor é um animal completamente diferente, embora eu tente exercer essa atividade de uma forma sensorial, assente numa ideia estética que me acompanha enquanto pessoa. É uma atividade dura, que carece de resiliência e de muito trabalho. O mercado editorial, assim como a grande maioria dos mercados, tem os seus vícios e maneirismos. Há que saber lidar com toda esta orquestra e compreender o nosso próprio caminho. Sendo um romântico, que assumo, acredito que tudo correrá pelo melhor. Como escritor quero que as pessoas leiam os meus livros; como editor quero que as pessoas leiam os livros dos meus autores. Esta poderá ser a linha comum destes dois caminhos. Até agora tem sido uma viagem fantástica.
Quais os principais desafios que uma editora independente enfrenta hoje em Portugal?
É um desafio comum a todas as empresas e negócios. A The Poets and Dragons Society nasceu da pura paixão pelos livros. Entrar no mercado acabou por ser um resultado quase automático do trabalho que se tem feito. Mantermo-nos no mercado, com um catálogo que seja reconhecido e agrade aos leitores, é já uma tarefa mais difícil. Chegar ao 'mainstream' com livros que nos satisfaçam e orgulhem, em que acreditamos e neles apostamos, que capta a atenção dos meios de comunicação social, dos críticos, dos académicos... "that"s a whole new ball game". É esse caminho que queremos trilhar, com qualidade, sensibilidade e bom senso.
Editar poesia é uma manifestação da utopia que tanto preza?
Sim, podemos afirmar que sim. As máquinas têm uma razão de ser diabólica: substituir as pessoas. O que tenho verificado nos últimos anos é que a maquinaria dos tempos modernos tem mudado as pessoas e estas parecem-se cada vez mais com as máquinas. O que nos distingue, o que faz de nós, pessoas, que sentem e apreendem de uma forma sensorial, tem sido, nos últimos anos, relegado para segundo plano. Viver em sociedade não é, por natureza e conceito, livre de conflitos e de cedências. A intolerância tem sido uma tendência crescente na última década, muito em virtude das mudanças de comportamento e do distanciamento físico entre as pessoas, que as redes sociais alimentam. A poesia, assim como a arte em geral, acaba por ser um bom remédio e ameniza essas pequenas alergias que nos afetam a todos. Há que cultivar a poesia, o conhecimento, o pensamento. Este último, sobretudo, é mister que se cultive e se faça a dita colheita em todas as estações do ano.
Qual o lugar da utopia em tempos como os atuais, que muitos associam sobretudo à utopia?
Quanto mais neurótico se torna o mundo, mais necessário e premente será pensar numa utopia. Esta relação entre o estado das coisas e pensamento é a atmosfera ideal para novas ideias e novas formas de ver e encarar o mundo. A utopia é essencial para a evolução do pensamento humano.
O Mundo de hoje está mais necessitado de poetas ou de dragões?
Sempre. O mundo precisa de sempre de linguagem e imaginação. Ambos são partículas essenciais da composição humana.
Esteve 15 anos sem publicar. Porquê um silêncio tão prolongado?
Quando fala em 15 anos, concluo que se esteja a referir ao período de tempo que mediou entre o Prémio Revelação Cesário Verde, atribuído em 2003 ao livro "Dionísias: as celebrações", e a publicação do livro "O Aprendiz", em 2018. Na verdade, o "Dionísias" foi escrito em 1993, quando tinha apenas 19 anos. Posso dizer que estive 25 anos sem escrever. Porquê? Por achar que ainda era bastante imaturo e a vida era ainda uma pedra bruta. Ainda não está polida, mas sinto que estou mais apto a pôr na folha branca o que me vai na alma e no coração. Foi um quarto de século em que li muito, aperfeiçoei a leitura e aprofundei alguns conhecimentos. Posso dizer que aprendi a pensar. E isso é, acredito, um arsenal muito importante para quem aspira a ser escritor.
Tem vindo a experimentar diversos géneros, da poesia à prosa. Acredita, porém, que há uma voz comum que os atravessa?
Acredito piamente, se me é permitido dizer. A poesia é, na minha opinião, a linguagem que melhor se adapta ao meu batimento cardíaco, à forma como uso a linguagem e o tempo. Escrevo como quem cumpre um compasso, tendo consciência das inerentes variações. A prosa é um exercício diferente, na medida em que podemos saborear a linguagem. Contudo, há, de facto, uma voz comum. Eu reconheço-a e outras a têm reconhecido também. O próximo livro é uma peça de teatro. Tem uma dinâmica completamente diferente, pois usa uma linguagem mais articulada, mas essa voz continua presente. Em "Lady Macbeth" procurei prestar tributo à vertente mais experimental de Shakespeare, bem patente após 1600 e que é bem patente em Macbeth. É uma peça que tem a preocupação do tempo, com andamentos rápidos e múltiplas variações. O livro "Shakespeare"s Language" de Frank Kermode faz uma análise da linguagem de Shakespeare em Macbeth, salientando o uso de uma linguagem que tem a sua fonte numa matriz inicial, na estrutura em que se insere toda a tragédia. Procurei cumprir essa tarefa, usando uma linguagem articulada e assente numa estrutura idêntica. Estou muito feliz com o resultado. Agora cabe ao leitor dar vida ao texto.
Trocar o exercício da advocacia pela edição foi uma decisão longamente pensada ou tratou-se de um impulso que resultou, antes de mais, da sua paixão pela escrita e pelos livros?
Fui advogado durante mais de 20 anos. Foi uma experiência fantástica. Mas a paixão pelos livros, mantida em lume brando nestes últimos cinco anos, forjou uma vontade férrea em iniciar uma aventura com essa antiga paixão. E decidi, de forma ponderada, dedicar-me em exclusivo aos livros, à escrita e à edição. Estou muito feliz com a decisão.
É um dos vários autores que tem ajudado a trazer para a literatura portuguesa influências ou correntes que estão longe de ser as dominantes. Há mimetismo a mais e diversidade a menos na literatura portuguesa atual?
Eu penso que o mimetismo que existe na literatura e nas artes em geral faz parte da sua própria evolução. Todos nós partimos de algo que já existe e que nos diz algo. Há autores que escolhem escrever livros que vivem e respiram numa atmosfera mais confortável, e outros há que experimentam um pouco mais e tentam novas correntes. O experimentalismo faz falta no ato de criação. Saramago transportou a linguagem oral para a sua escrita e criou um estilo muito próprio. O Gonçalo M. Tavares tem feito também feito algumas experiências e está a desenvolver um corpo de trabalho muito interessante. Eu tenho tendência a escolher projetos que me tirem o sono, que me façam ir além do que penso conseguir fazer. Não é algo pensado, é algo que faz parte de mim. Gosto dessa dificuldade e gosto da pressão. Se não existir essa pressão torno-me preguiçoso e a escrita torna-se aborrecida. O livro "Eliot" foi um dos mais altos picos que escalei. Foi um livro que me deu imenso prazer escrevê-lo. No fim, penso que é um livro que tem pensamento, experiência de vida e, acima de tudo, uma melodia poética que o torna, na minha opinião, muito possivelmente, o meu livro mais bonito. Sendo autobiográfico, é uma carta de amor à vida.
Temos vindo a assistir aos primeiros passos de uma revolução chamada Inteligência Artificial que irá mudar a forma como é concebida a própria criação intelectual. No plano literário, acredita que o impacto será idêntico?
Vivemos tempos muito estranhos. Esta era das máquinas criou ruturas no processo analítico e acaba por ter um efeito perturbador no pensamento humano. O tempo, o silêncio e o ato de estudar e aprofundar conhecimento são bens cada vez mais raros, mas essenciais ao desenvolvimento da humanidade e do seu pensamento. A inteligência artificial tem as suas virtudes, mas quando é usada para pensar por nós, para se exprimir por nós, o pensamento profundo e assente numa historicidade que nos é inerente deixa de ter razão de ser. E quando isso acontecer, o intelecto e a educação deixarão de ser relevantes, passando a meras relíquias, expostas em museus que ninguém visita. No entanto, penso que o problema não reside na inteligência artificial. O problema é bem maior. É um problema de estrutura e de educação, que deve ser abordado de forma séria. Eu pertenço a uma geração em que a educação sempre existiu em estado de crise. Pertenço também a uma geração que conheceu um mundo analógico e um mundo mais digital, como é este em que vivemos atualmente. Esta experiência permite-nos escolher, seguir caminhos diferentes. As novas gerações podem não ter essa opção e, nesse sentido, torna-se muito provável que o impacto seja devastador para o desenvolvimento do pensamento humano.
De que obras ou autores continua a ser, passados todos esses anos, mais devedor?
Há livros que nos marcam. Autores que nos marcam. E depois há aqueles autores que se infiltram dentro de nós e não há forma de nos libertarmos deles. Shakespeare é o meu porto seguro. É a ele que regresso sempre que me sinto perdido. Joyce é o tormento que adoro sentir. Eliot é o meu mestre. O livro "The Waste Land" é, para mim, a grande obra literária do século XX. A linguagem de Saramago é extraordinária; Proust e Eça de Queiroz fascinam-me pela elegância da linguagem. Há tantos que poderia enumerar, mas posso afirmar que Shakespeare e Eliot são os meus maiores credores.
Numa entrevista recente, dizia que a melhor forma de fomentar o gosto pela literatura era "cortar a eletricidade a partir das 21 horas e voltarmos aos candeeiros a petróleo ou às benditas velas". Humor à parte, crê que são necessárias medidas radicais para se combater a atual rendição da sociedade ao entretenimento nas suas modalidades mais ligeiras?
Foi, de facto, uma piada; mas existe nela alguma verdade. Um dos meus grandes prazeres, enquanto criança que tinha nos livros a sua companhia, foi o ato de ler à lareira. O crepitar do lume, o ato de ler invertido no sofá, para que a luz alumiasse as páginas, é uma das minhas recordações de infância. Hoje temos imensas opções para passar o tempo, todas elas uma dose de veneno para o tempo que se pode dedicar à leitura. Penso que essas medidas já existem, mas não são, na minha opinião, implementadas na medida certa. Não se criam hábitos de leitura na grande maioria das escolas. Não se cultiva a ida à biblioteca, a relação com o livro enquanto objeto físico, o prazer que um pode retirar da leitura. A imaginação é um elemento essencial na infância de qualquer pessoa. A leitura é o caminho para uma infância em que o Peter Pan voa e a Alice persegue um coelho branco de colete e relógio de bolso. É importante que os professores e os pais criem hábitos de leitura nas crianças mais pequenas e que os acompanhem ao longo da sua formação e crescimento. É uma tarefa fácil? Não, mas essa dificuldade não deve ser motivo para desistir. Como nos ensina o nosso Fernando Pessoa, "tudo vale a pena quando a alma não é pequena". Mas temo que, seguindo este caminho, a alma tende a diminuir até adotar comportamentos automatizados. E quando isso acontecer a humanidade passa a ser uma relíquia. Mas eu serei um dos resistentes.