Dalila Rodrigues, ministra da Cultura, faz o balanço de um ano e das polémicas que atravessaram o seu mandato. Refuta acusações e manifesta o desejo de continuar no cargo, se a coligação do Governo vencer as eleições.
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Dalila Rodrigues revela ao JN que pretende continuar na pasta da Cultura se a coligação AD formar Governo após as eleições legislativas de 18 de maio, e aponta o caráter estruturante das suas políticas. Rejeita o rótulo de “ministra das exonerações”, e argumenta que apenas dispensou dois responsáveis. Defende que herdou atrasos significativos no Ministério, incluindo no PRR e na organização de Évora 2027 – Capital Europeia da Cultura. Sobre a auditoria à Casa da Música, apoia a transparência. Relativamente ao Teatro Nacional São João, aceita a solução da direção interina após a desistência do vencedor do concurso público.
Neste balanço de um ano, reconhece desigualdades de género na Cultura, embora veja avanços na nomeação de diretoras para museus. Esclarece que não escolheu o novo secretário de Estado da Cultura, e que a sua secretária teve uma saída voluntária. Defende o mecenato sem substituir o papel do Estado e diz estar de consciência tranquila, colocando “o país antes das clientelas”.
O princípio orientador das suas políticas culturais é a atuação em todo o país, promovendo descentralização e valorização dos territórios através dos museus e outros equipamentos culturais. Defende uma mudança de paradigma, com enfoque na inclusão, diversidade cultural e investigação e apresenta binómios estruturantes: conservar/restaurar, programar/fruir. Critica a reforma no património iniciado pelo seu antecessor, que diz ter criado assimetrias, extinguindo direções regionais e fragilizando a capacidade de preservação. Valoriza o património imaterial, como saberes artesanais e gastronómicos, e reforça a importância das bibliotecas como unidades culturais. Das suas ações, destaca os ciclos celebrativos (Vasco da Gama, Carlos Paredes e Luís de Camões), as bolsas de criação e as unidades patrimoniais regionais.
Se a coligação do Governo vencer as eleições de 18 de maio quer continuar ministra da Cultura?
Estou muito motivada para cumprir o meu mandato. As minhas políticas culturais são de caráter estruturante e quanto mais eu realizar, quanto mais ação desenvolver, mais trabalho deixo feito e, portanto, mais significativo será o meu legado.
Foi apelidada “a ministra das exonerações”...
É absolutamente injusto, isso resulta da circunstância de que em Portugal não se discutem as políticas culturais, mas sim atos isolados. É necessário valorizar o pensamento crítico, fundamentalmente, e ter em consideração as políticas culturais para que se enquadrem medidas concretas e atos concretos. E, portanto, é absolutamente injusto porque, efetivamente, exonerações fiz duas.
Quer contar a sua versão sobre essas exonerações?
Penso que faz todo o sentido que eu fale dessas exonerações no quadro das políticas culturais que defendo. A primeira, foi ter exonerado o presidente do Património Cultural Instituto Público. E foi o único exonerado, porque, na verdade, tive o gosto de convidar os vice-presidentes, que não estavam disponíveis e, portanto, foi apenas o presidente. O objetivo era resgatar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) de um atraso que era altamente comprometedor. Portanto, a primeira questão, e um dos grandes objetivos e desígnios do meu mandato, é o cumprimento do PRR, sem o qual o meu mandato ficaria comprometido.
E sobre a segunda?
Era devolver ao país um equipamento de âmbito nacional e internacional: o Centro Cultural de Belém não é de Lisboa, nem de clientelas que têm acesso ao financiamento. O CCB tem de cumprir os objetivos das políticas culturais nacionais. Este foi o exemplo cabal de que não se discutem as políticas e o pensamento crítico que deve estar associado ao conjunto de medidas que as concretizam, mas sim atos isolados. Preocupa-me. Gostaria muito que se discutissem as políticas em vez de se inventarem estados de humor e de espírito.
O seu antecessor, Pedro Adão e Silva, diz que o seu mandato foi um ano perdido na política cultural...
O ex-ministro da Cultura diz que foi um ano perdido e eu vou dizer que herdei muitos atrasos e problemas. Os maiores atrasos que herdei foi desde logo o PRR e Évora 2027. Quando este Governo começou, no dia 2 de abril, não havia sequer nome para a presidência da Capital da Cultura, porque o ex-ministro não tinha chegado a acordo com o presidente da Câmara de Évora. Portanto, a minha primeira tarefa foi indicar o nome, em reunião com o presidente da Câmara. Assim, encontramos um nome consensual, a dra. Maria do Céu Ramos. Depois, eu obriguei a que se abrisse em concurso para o diretor artístico e executivo – está agora o procedimento a terminar. Na próxima semana, será conhecida a identidade dos dois diretores artísticos que vão já exercer funções de imediato. O mesmo aconteceu com o projeto do cheque-livro e com os ciclos comemorativos como o de Camões.
Viu as conclusões da auditoria à gestão da Casa da Música?
Sou uma grande defensora do escrutínio e das políticas de transparência, de critérios, de justiça e por isso parece-me sempre bem que haja auditorias e que sejam verificados os procedimentos para as pessoas visadas, mas certamente que deste processo sairão práticas de transparência e de clareza, ou pelo menos haverá maior cuidado na prestação dos atos e dos procedimentos.
O Teatro Nacional São João continua sem diretor artístico, depois do concurso público falhar. O que aconteceu?
Tenho o cuidado de respeitar o princípio da não ingerência, mas qualquer ato que se venha a cometer internamente não é da minha responsabilidade, nem dou indicações nesse sentido. No que diz respeito ao Teatro São João, tendo aprovado os documentos inerentes ao procedimento concursal, o presidente do Conselho de Administração teve o cuidado de me informar acerca da indisponibilidade do vencedor do concurso e do que o Conselho de Administração estava a pensar fazer. Uma vez que a programação já estava desenhada e comprometida, e uma vez que o presidente do Conselho de Administração é também um profissional desta área, professor universitário de dramaturgia e, de facto, um dirigente com larga experiência, dr. Pedro Sobrado, pareceu-me que a proposta que me apresentaram [direção interina] era aceitável e, portanto, não tenho nada a dizer sobre isso.
Porque não foi escolhido outro candidato finalista?
O júri assim definiu os critérios e o ministro não tem competência, nem deve ter, para interferir a esse nível. O responsável da pasta da Cultura tem é de impor os procedimentos concursais. Não admito que haja convites.
Acha que ainda há uma desigualdade de género muito grande no setor cultural?
Uma grande desigualdade. Eu penso que o papel das mulheres na sociedade portuguesa está muito longe de estar concretizado, é uma questão transversal em todas as áreas. Na área da cultura, o poder continua a ser maioritariamente dos homens e não das mulheres. E eu sinto, no exercício das minhas funções, críticas que revelam e refletem justamente princípios de uma cultura machista. As mulheres querem-se submissas até na política?
Apesar de os números de emprego no setor cultural mostrarem alguma equidade, há uma diferença de quem ocupa os cargos de poder?
Os dirigentes são maioritariamente homens. Mas, por exemplo, no universo dos novos diretores de museus, dos 37, na verdade 36, porque Beja ainda não tem – o procedimento está agora praticamente a concluir-se –, maioritariamente são mulheres. Vejo com muito agrado que esses princípios de equidade de género se materializem – refletem uma sociedade mais justa.
A secretária de Estado da Cultura também foi substituída por um homem.
Não fui eu que nomeei o secretário de Estado. É o senhor primeiro-ministro que nomeia. Lamento bem dizer isto, não quero deixar o senhor primeiro-ministro numa situação de desconforto, mas não me podem imputar responsabilidades porque, na verdade, não tenho o poder de nomear um secretário de Estado.
A ideia que ficou é que foi a ministra que nomeou o novo secretário de Estado.
Não vou responder a essa questão. Como ele próprio diz, a política é um carrossel. Mas, é importante que clarifique: a secretária de Estado pediu-me para comunicar ao sr. primeiro-ministro que gostaria de voltar à vida académica. Uma vez que o objetivo que a levou ao exercício destas funções foi o pedido de que me acompanhasse para resgatar o PRR do atraso. Cumprido esse objetivo, comunicou-me que estava tranquila, mas que, numa oportunidade que o sr. primeiro-ministro entendesse conceder-lhe, poderia ser substituída. Portanto, foi absolutamente tranquila a passagem.
De que forma pretende fomentar o mecenato cultural?
Não defendo o princípio de que um mecenato substitua os deveres do Estado, eu defendo a cultura como um serviço público, que tem, evidentemente, de cumprir os seus objetivos. A reestruturação do mecenato passa por uma nova lei, ainda antes do termo do mandato apresentado. De resto, o primeiro-ministro atribui-lhe uma grande importância.
O Acesso 52 foi um projeto ganho?
O Ministério da Cultura dispõe de 37 equipamentos [museus, monumentos e palácios], que oferece de forma gratuita, 52 dias por ano, aos residentes em Portugal. A medida tem tido uma adesão extraordinária: 620.655 visitantes, em oito meses. Portanto, tenho a certeza que até o dia 1 de agosto, vamos facilmente concretizar um milhão de visitantes. A ideia é estimular o usufruto dos bens culturais. É partilhar gratuitamente, porque é fácil perceber que os portugueses têm baixas taxas de participação nas atividades culturais, porque têm dificuldades económicas.
E como é que se contraria isso ?
Desde logo, fazendo estas práticas de gratuitidade. Democratizar o acesso à cultura é um princípio também estruturante das minhas políticas. A medida Teatro 50% também já existe, o TNSJ já foi utilizado, desde o dia 1 de Janeiro, por 812 jovens, até aos 25 anos, o que é um ótimo indício.
Como avalia a importância da CPLP na promoção da cultura portuguesa?
A CPLP tem um papel importantíssimo na minha ação governativa. As fundações apoiadas pelo Estado, Casa da Música, Serralves, CCB, e a Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, recebem uma subvenção, no caso da Casa da Música, sem qualquer compromisso com o Estado e sem qualquer retorno em termos de serviço cultural público. Pela primeira vez, impus às fundações que me enviassem livremente o estabelecimento de um contrato-programa que dê retorno ao país desse investimento. No caso da Casa da Música, que receba em residências artísticas os nossos músicos das bandas filarmónicas e orquestras regionais, que sairão certamente valorizados e com outras perspetivas de trabalho.
Foi também acusada de deixar as artes performativas e a DGArtes num limbo…
A par da definição destas políticas culturais e das medidas que as concretizam, tive o cuidado de dar imediatamente o sinal de estabilizar o setor da criação contemporânea em todas as áreas disciplinares, garantindo, através do diretor-geral, que mantinha os concursos e os montantes. Houve até um aumento: nos apoios a projetos passámos de 14,2 milhões, que foi o montante atribuído em 2024, para 14,3 milhões em 2025. E nos apoios à Rede de Teatros e Cineteatros (RTCP) passámos de 6,75 milhões para uma dotação de 8 milhões no próximo ano.
A RTCP também aumentou muito...
A RTCP precisa de ser reestruturada e tem tido muitas sugestões de melhoria, muitas estruturas que tenho auscultado em audiência, a Plateia, a Performart, a rede da dança contemporânea. Há pedidos, há sugestões de melhorias a promover e a concretizar na rede. Pedi ao diretor-geral das Artes que trabalhasse nesse sentido e sei que o está a fazer. Algumas sugestões de melhoria passarão por um diálogo aberto e proveitoso com os presidentes de Câmara e com os vereadores de cultura de alguns municípios. Pedi que me fosse entregue, com a maior brevidade, esse caderno de encargos para a RTCP, até porque a RTCP está prevista nas medidas de valorização das bibliotecas. Tem uma dotação orçamental no orçamento da execução de 2025, para residências artísticas nas bibliotecas que tenham uma perspectiva de complementaridade e de presença também da ação da rede da RTCP e também da REPAC. Portanto, há muito trabalho a fazer na Direção-Geral das Artes porque não podemos aceitar que companhias como a Barraca, com a Céu Guerra, o Espaço das Aguncheiras, sob a direção da São José Lapa, ou a Filandorra, com a direção do David Carvalho, fiquem excluídas dos apoios. Francamente, considero que o número de concursos é, desde logo, preocupante.
Acha excessivo o número de concursos?
Em 2025 estão previstos 10 concursos na Direção-Geral das Artes. Nem a DGArtes tem capacidade de resposta. As comissões de avaliação têm um trabalho hercúleo e já se sabe que os critérios de avaliação não respondem à realidade das estruturas, que têm uma atuação, uma atividade em territórios de baixa densidade populacional, de muita exigência. Atrasei a decisão da passagem dos apoios quadrienais para situações de avaliação, para que se possam eliminar futuramente os concursos. Atrasei o processo à procura de um critério que me permitisse garantir abrangência e equidade geográfica. É fundamental que nas comissões de avaliação haja um elemento que tenha um olhar fundamentado na sua própria visão e experiência.
O que é quer dizer com isto? Por exemplo, para avaliar a Filandorra tem que ver alguém que seja do Nordeste?
Alguém que faça parte dessa realidade... Há uma rede de ensino artístico no país, garantido pelas universidades e pelos institutos politécnicos, por exemplo, que têm professores com capacidade de avaliação, que têm experiência e visão e que, simultaneamente, fazem parte das comunidades a que se destinam a essas programações. E, portanto, encontrar um critério a partir do qual os comissores de avaliação inscrevem e descrevem um olhar concreto do que é a realidade da oferta cultural dessas estruturas. Isso é para mim muito importante.
Acabaria com o modelo dos concursos?
O que está previsto é justamente que as estruturas que obtenham uma classificação superior a 80% fiquem com apoio garantido, sem obrigação de procedimento concursal.
Acabaria com as notas de corte?
Haveria um conjunto de estruturas que ficam garantidas, pois é preciso encontrar uma solução para estruturas novas...
Mas num cenário perverso, a Barraca fica com 77 pontos e isso não mudaria nada...
Não, mas a perspetiva não é a minha. Eles já estão excluídos. Eu tenho até sido sistematicamente confrontada, até com alguma agressividade, na Assembleia da República, relativamente à minha decisão de os apoios quadrienais passarem a ser objeto de uma avaliação e não de um procedimento concursal. Sistematicamente, há estruturas que têm ótimos resultados e que ficam sem apoio, porque o montante definido não é suficiente. Mas devo dizer-lhe que os 80 milhões que o governo anterior, eram 70 e tais, não só foram garantidos, como foram aumentados. Portanto, eu não posso ser acusada de ter deixado num limbo ou num registo de insegurança as estruturas de criação. Toda a vida trabalhei na área do património artístico, prioritariamente, mas tenho uma experiência de trabalho, tanto na Casa da Música, como na Casa das Histórias da Paula Rego, e no Centro Cultural de Belém. Portanto, tenho a obrigação, porque sou da área na qual exerço funções, tenho uma visão técnica, também sei o que é programar e não ter meios, sei o que é ter imperativos de conservação. Os meus últimos cinco anos no Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém foram uma experiência extremamente dura, difícil, sem interlocução, sem presença. Foi tão difícil que, na verdade, denegar a minha própria experiência é uma impossibilidade. E por isso, esta necessidade de auscultar, de ouvir, de me deslocar incessantemente para todos os territórios. O que gosto mais de fazer em termos de ação governativa é justamente encontrar as comunidades e as estruturas e os responsáveis. Tenho tido nos presidentes de câmara e nos vereadores da cultura os melhores parceiros.
Como encontrou o papel da educação artística nas escolas ?
Penso que o ensino artístico tem no Plano Nacional das Artes o melhor exemplo, em termos do que pode ser uma política nacional para o ensino artístico. É um recurso partilhado entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, felizmente, e temos ambas as áreas governativas numa visão coincidente do imperativo de forçar e valorizar o Plano Nacional das Artes. Portanto, aí estamos certos de que há um caminho traçado. O que é importante. Porque este programa foi criado pela ministra Graça Fonseca e é importante reconhecer que nem todos os legados são maus, pelo contrário, há legados ótimos.
Que balanço faz deste seu ano como ministra da Cultura?
No dia em que sair, em que encerrar as minhas funções, saio com a minha consciência absolutamente tranquila. Sei não ter prejudicado uma única estrutura com a minha passagem pelo Ministério da Cultura. O país antes das clientelas.