Ao terceiro dia, a competição oficial da Berlinale entrou finalmente em velocidade de cruzeiro.
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E ao terceiro dia o Festival Internacional de Cinema de Berlim entra na sua normalidade, com a projeção de uma média de dois filmes em competição pelo Urso de Ouro, ao mesmo tempo em que as outras seções continuam a mostrar também os seus filmes. No caso que mais interessa o cinema português, será necessário esperar quase pelo final da Berlinale para que tenha lugar, na próxima quinta-feira, dia 22, a estreia mundial de “Mão no Fogo”, a concurso na seção Encounters. A realizadora, Margarida Gil, chegará na véspera.
O filme que tivemos possibilidade de ver nesta seção, o senegalês “Demba”, desaproveita as potencialidades da sua história quando o realizador, Mamadou Dia, decide complicar o relato, tornando-o por vezes incompreensível. Por vezes, o mais simples é o melhor, e nada indicava neste filme a necessidade de ir por um caminho diferente.
A personagem central é um funcionário do município de uma pequena localidade no norte do país que, ao fim de trinta anos de serviço, enfrenta a reforma, e os traumas do passado. Uma história universal, de que Mamadou Dia oferece a “versão” senegalesa, mas infelizmente com uma opção narrativa que não capta o espectador, afastando-o uma vez mais de um cinema africano que teima em não se afirmar.
Na competição, Olivier Assayas ofereceu-nos, com “Hors du Temps”, o relato autobiográfico do seu confinamento na casa da família, na companhia do irmão e das suas companheiras. Para quem gosta do universo do cineasta, também um grande cinéfilo, trata-se de um retrato por vezes terno, outras divertido, muito honesto e despretensioso. Com a vantagem de que, estando o irmão mais ligado ao universo musical, assistimos a imensas conversas sobre cinema, música e literatura.
A certo ponto do filme, Vincent Macaigne, inesperada escolha para representar Assayas, fala com a sua nova companheira, a caminho de um jogo de ténis, de um projeto de adaptação das “Cartas de Amor de uma Freira Portuguesa”, com Kristen Stewart como protagonista. Apenas uma “blague” ou um desejo efetivo, só o futuro o dirá. Para já, fiquemos com as neuroses de Macaigne/Assayas sobre o Covid e os benefícios do confinamento na reflexão sobre o futuro do cinema.
Andreas Dresen, que há dois anos deliciara a Berlinale com “Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush”, que felizmente estreou em sala em Portugal, regressa não só a um caso verídico como também faz o cinema germânico regressar ao período nazi, com “Para Hilde, Com Amor”. A Hilde do título foi uma jovem alemã que pertenceu a um grupo de resistentes e espiões, ajudando o marido a enviar mensagens para a União Soviética e que seria presa quando estava grávida. Hilde teve o bebé na prisão, ajudou outras mulheres na enfermaria, mas não seria poupada à pena de morte por traição.
O filme baseia-se no livro do filho, hoje com 80 anos. Um regresso a um passado que não se deseja que se repita, mas que infelizmente tem a sua justificação com a preocupante subida da extrema-direita em vários pontos da Europa, por vezes nem sequer renegando o nazismo. Só em Berlim, nas últimas eleições municipais, vários bairros foram conquistados por estes partidos extremistas. É necessário confrontar sobretudo os mais jovens com o lado maligno do nazismo, e um filme como “Para Hilde, Com Amor”, com a sua força narrativa, é uma ferramenta útil nesse sentido.
Mostrando mais uma vez a pujança do cinema italiano, “Another End”, de Piero Messina. Num futuro mais ou menos próximo, a companhia que dá o nome ao filme permite guardar memórias de pessoas que morreram e trazer a sua consciência para junto dos seus entes queridos. É o que vai tentar o protagonista do filme, que perdeu a mulher, encontrando-a no corpo de uma outra que conhece num bar erótico. Contando com a norueguesa Renate Reinsve num duplo papel, ao lado de Gael Garcia Bernal e Berenice Bejo, o filme perde-se um pouco pelo meio, tenta uma dimensão operática que nem sempre resulta, mas é original no seu conceito e por vezes perturbador, na sua abordagem da perda e do luto.
Nas restantes secções do festival, destaque para o regresso de Nicolas Philibert, que o ano passado venceu o Urso de Ouro com “Sur l’Adamant”, documentário sobre o dispositivo de apoio a doentes psiquiátricos. Agora, fora de competição, mostra em, “Averroès & Rosa Parks” a própria instituição hospitalar. Com o mesmo cuidado na observação da doença psiquiátrica, leva-nos à descoberta de médicos e doentes, livres face à sua câmara e antecipando o que será o fim de um tríptico sobre o tema, já filmado, e que se centrará nos doentes que recebem visitas domiciliárias de médicos e enfermeiros. Um olhar sobre nós próprios, que nos embala e questiona de princípio a fim.