David Cronenberg: “Não acredito que a arte possa ser uma terapia para o artista”
Autor canadiano perde a mulher aos 82 anos e faz o seu filme mais pessoal. “The shrouds” inventa uma tecnologia pós-morte.
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O mestre do horror clínico está de volta e em grande forma. “The shrouds – As mortalhas” já está nos cinemas, com Vincent Cassel e Diane Kruger nos protagonistas. Passado numa sociedade futurista, o novo filme de David Cronenberg centra-se no diretor de um cemitério equipado com tecnologias de imagem que permitem aos familiares dos defuntos terem acesso a uma câmara colocada no interior do caixão, podendo acompanhar o processo de decomposição dos seus entes queridos. Uma história que não se consegue dissociar do facto de ter sido escrita após a morte da esposa de longa data do realizador canadiano, hoje com 82 anos.
Diria que este é o seu filme mais pessoal?
Todos os filmes são pessoais, de uma forma ou de outra. Às vezes é óbvio, outras vezes só pessoas que me conhecem é que compreendem. Mas este, sim, provavelmente é o filme mais pessoal que alguma vez fiz. Há, por exemplo, diálogos que foram ditos por mim e por outras pessoas. Mas há também uma grande combinação de coisas inventadas com outras que se passaram na minha vida.
No filme, Vincent Cassel tem um penteado igual ao seu…
Ele agora tem o cabelo rapado. Se tivesse chegado às filmagens de cabelo rapado, eu teria feito o filme na mesma. Foi mesmo uma coincidência que ele tenha aparecido com um penteado como o meu. Mas já muitas pessoas me disseram que eu sou muito mais bonito do que ele [riso]. Não somos assim tão parecidos.
Como é que entende o luto?
O que penso do luto está muito claramente expresso no filme. A personagem do Vincent Cassel diz: eu vivo no corpo dela, o corpo dela é o mundo para mim. Isso é luto. Mas não podemos viver todos os dias da nossa vida em luto. Ficaríamos paralisados, sem qualquer reação. Como as viúvas de certas culturas que têm de usar roupa preta o resto da vida. Na América do Norte não o fazemos. Temos de aprender a viver de novo.
Este filme é uma forma de terapia para si?
O filme não tem nada a ver com terapia. Não acredito que a arte possa ser uma terapia. Para o artista não, mas talvez para o espectador. Acredito que haja pessoas que vão ver o filme e lhes faça lembrar o seu próprio luto. E que o filme lhes dê algum conforto. Isso pode ser muito bonito. No meu caso, senti-me apenas como um realizador de cinema a fazer o seu filme. Nunca fiz terapia na vida.
Acha que haveria pessoas interessadas em adquirir este serviço, na vida real?
Eu inventei, na minha cabeça, uma clientela que gostaria de o fazer. Se isso aconteceria na realidade, não tenho a certeza. O processo de enterrar uma pessoa, em vários pontos do mundo, e o longo dos tempos, é por vezes muito bizarro e estranho. É muito possível que, se esta opção se tornasse disponível comercialmente, e fosse bem publicitada, surpreendentemente talvez encontrasse pessoas que o quisessem fazer.
A despedida de um ente querido é sempre dolorosa...
Para algumas pessoas, o funeral não é o fim. Sentem que vão ver os seus entes queridos na outra vida, no paraíso ou algo assim. Mas, e se não acreditarmos na vida depois da morte e o que o paraíso não existe? Se acreditarmos que aquele corpo da pessoa que se amou é a única coisa que resta? Hoje desenterramos esqueletos com cinco ou dez mil anos. Vale a pena mantê-los? Tudo depende da cultura e da opção de cada pessoa.
Até que ponto a tecnologia no filme é credível ou realista?
Eu inventei a tecnologia. Mas acredito que hoje seria possível ter câmaras 3D no interior de um caixão, com lâmpadas led que pudessem durar 10 anos. As mortalhas, os lençóis, é uma maneira que várias culturas têm de enterrar os seus mortos. Pensei que seria uma forma de evocar essas culturas, que seria credível.
A marca Yves Saint Laurent, que é produtora, tem envolvimento criativo?
Um terço do orçamento foi pago por eles. Do ponto de vista criativo, também estiveram muito envolvidos. Algumas das personagens não são propriamente pessoas que pudessem vestir YSL. Por isso, tivemos de ter esta conversa: que personagens poderiam vestir YSL? E foram capazes de desenhar roupas que não são propriamente do estilo habitual deles. Foi adorável trabalhar com eles, foram muito entusiastas.
O filme tem várias cenas de nudez e de sexo. Usou coordenadores de intimidade?
Não foi necessário. Os meus atores não são jovens que estão a fazer um filme pela primeira vez, são atores experientes. Somos todos crescidos. Leram o guião, sabiam o que estava lá, que é muito detalhado. Falámos muito sobre essas cenas. Se tivessem questões ou receios, discutíamos, mas nem foi preciso.
O que pensa desse novo cargo de vigilância?
Percebo que alguns jovens atores se sintam mais confortáveis. Pode ser útil se não confiarem na sensibilidade do realizador. Respeitarei se um ator me disser que só faz uma cena se tiver um coordenador de intimidade.