David Fonseca: "Fazer canções não é muito diferente de visitar os nossos fantasmas"
Cantor David Fonseca edita disco visual, distinto de tudo o que já fez, em que cada tema é um filme. Nesta entrevista ao JN, explica o que é o seu novo "Living room bohemian apocalypse"
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Um álbum visual, dividido em sete episódios ou mini-filmes feitos para acompanhar a história de cada tema. Um mundo surreal que mistura passado, presente e futuro, uma casa assombrada e histórias cantadas com um fio condutor. David Fonseca está, há anos, muito longe das memórias dos Silence 4 e de tudo que se faz em Portugal. Nesta entrevista ao JN admite a sua insatisfação e vontade de experimentar, e revela a paixão pelo cinema e por cineastas como Wim Wenders, e, claro, pela música. O novo "Living room bohemian apocalypse" vai alimentar a digressão: 18 de setembro no Estoril; 4 de outubro no Tivoli (Lisboa); 12 de outubro no Sá da Bandeira (Porto) e 12 de novembro no Cineteatro do Montijo.
Sobre o "LRBA", um disco-filme em sete partes, como surgiu esta ideia e no que consiste?
Isto era uma ideia que eu queria já fazer há muito tempo, que no fundo era cruzar o mundo cinematográfico, um amor enorme que eu tenho, com o da música. É algo que eu tenho vindo a fazer com os videoclipes mas queria fazer além disso, cruzar elementos mais ilustrativos do que os vídeos - até porque estes normalmente surgem depois das canções. Aqui, à medida que fui escrevendo quis cruzar a ideia visual com o processo criativo, com uma narrativa, ainda que surrealista, que mostra um bocado o processo de fazer canções. Era esta a ideia, e quando surgiu o apoio Garantir Cultura, achei que era uma boa oportunidade para por esta ideia em prática de forma mais efetiva.
É o que chamaria um disco conceptual?
Sim, eu não gosto muito dessa terminação porque penso que distancia as pessoas do que é um disco, porque as canções aqui também vivem por si, num universo até muito pop, muito radiofónico - e nesse sentido perdem a sua ideia conceptual. Mas penso que em tudo o que faço e tenho feito há sempre uma ideia conceptual sim já fiz discos que duram o ano todo, que falavam das estações, um programa de rádio, e desta vez fui um bocado mais longe nessa ideia; mas depois o disco acaba por viver fora do que o que o iniciou.
Preocupa-o que sendo um trabalho com temas mais longos, tenha menos airplay, seja menos tocado nas rádios?
Acho que não, porque eu tenho sempre uma preocupação em que as canções cheguem às pessoas e sejam ouvidas: eu não quero viver numa montanha a fazer canções para mim. Por exemplo, o single tem 9 minutos e saiu logo com um radio edit [versão curta para rádio] de 3,5 minutos, porque eu gosto mesmo que as canções cheguem às pessoas. Ao fazer e criar faço-o de forma livre mas depois do disco estar feito começo a pensar como pode chegar. Hoje em dia uma banda já não teria hipótese de fazer um tema como o "Paranoid Android" dos Radiohead e passar na rádio, seria impossível porque as rádios estão muito formatadas de outra forma, é o que funciona e temos de pensar nisso.
Há algum artista que o tenha inspirado para um trabalho mais fora da caixa?
Por acaso não acho que haja assim ninguém, este tipo de trabalho já foi feito por outros artistas que levam a ideia visual mais à frente, a Bjork faz sempre coisas muito visuais, conceptuais e arrojadas mas cá é difícil e eu percebo porquê: um projeto deste género é quase impossível sem um apoio como o que surgiu, não teria sido possível com o tamanho da equipa, os envolvidos, que é o que faz com que o projeto tenha este ar final, mais sofisticado.
Pretendeu contar uma história, com principio meio e fim? Qual é?
A história começa comigo numa casa assombrada, que é um pouco uma metáfora para a minha cabeça, no fundo, e o sítio onde eu estava a fazer este disco - que era onde toda a gente estava, confinado. E assombrada porque fazer canções não é muito diferente do que visitar os nossos fantasmas. As canções vão falando de uma certa vontade de sair dali, e o disco vai-se desdobrando numa espécie de espelho, uma projeção da minha pessoa, dos meus diálogos interiores, daquilo que é constatar como são as minhas relações com as pessoas; e acaba por ser um disco acerca também de solidão, mas que acaba com uma fuga.
Sobre o último capítulo, "Falling out of love", diz ser uma canção sobre fins mas com esperança no futuro; no fundo é um disco de superação?
É um bocado, de superação de tudo, da pandemia, de alguns fantasmas pessoais, de inúmeras coisas que me assaltaram durante a feitura do disco. E quis filmar a última parte na praia de Peniche, que é um local muito particular para mim, os meus avós são de lá e sempre viveram com o horizonte ao fundo, sempre virados para a superação e eu quando era miúdo percebi que era porque eles tinham sempre os olhos no fundo mais vasto, pelo que quis terminar nessa nota.
Há imagens suas antigas, fantasmas, há aqui um pouco de "Conto de Natal", de Charles Dickens?
Não necessariamente, não acho que funcione assim mas eu gosto da ideia de visitar o passado mas... eu sou a pessoa menos nostálgica que conheço, tenho muito os olhos no futuro e sobretudo no presente. E o que quero mostrar não é uma ideia nostálgica, mas mostrar que quando eu era miúdo a sensação era igual, que o presente não é assim tão diferente daquilo que a minha vida sempre foi. Sempre quis perseguir uma ideia, sempre tive esta insatisfação, até foi engraçado ver essas imagens do passado - em algumas estou com os Silence 4 e nem me lembrava delas, andei à procura. Mas quando as vi não deixei de me surpreender que o meu espírito era exatamente o mesmo, a minha insatisfação constante na procura de algo, é um botão, que nunca desligou. Por exemplo quando acabo um disco estou já a pensar no próximo e isso é uma coisa que as pessoas não devem desistir, do que as apaixona e conduz porque a ideia de estar vivo é um bocado isso, perseguir uma ideia do que nos satisfaz, ou que nos dá algo diferente do que o que já temos.
Com essa paixão pelo cinema, já pensou em fazer um filme?
Já, mais do que uma vez. Mas é uma ideia que me frustra um bocado; porque eu venho de uma área onde sou muito autossuficiente e um filme não é algo assim, teria de abdicar de pelo menos uns dois anos e não tenho espaço nem tempo. Mas gostaria muito, um dia, é algo que adoraria fazer.
Os espetáculos ao vivo, são uma parte importante? Como vai funcionar com este disco?
Sim, e que eu espero que sejam uma festa; e por isso é que foi tão difícil com a pandemia, primeiro não poder tocar e depois tocar com tantas regras, as pessoas não se poderem levantar, dançar, estarem de máscara, é quase a antítese que deva ser um concerto, uma libertação. Os novos concertos vão trazer um pouco do universo do disco mas apenas isso, sem esquecer os temas antigos e o que é um espetáculo ao vivo.