Depois do prometedor "O Começo", que arrecadou quatro dos principais prémios de San Sebastian, melhor filme, realização, argumento e atriz, a georgiana Dea Kulumbegashvili está de volta com "Abril", que já estreou nos cinemas. Depois de uma meditação sobre a religião, o tema do filme é o aborto, ainda de certa forma tabu no seu país.
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A história, protagonizada de novo pela notável Ia Sukhitashvili, gira em torno de uma enfermeira de um pequeno hospital de província que faz abortos clandestinos. Estivemos a falar com a realizadora, sobre o tema, sobre a situação política na Geórgia e sobre o seu cinema.
Qual é a situação legal do aborto na Geórgia?
Neste momento, é possível fazer um aborto legal até 12 semanas de gestação, fazendo um pedido, com uma carta de um psicólogo e de um médico a dizer que o aborto é necessário. Mas a situação está sempre a mudar, e nem sempre infelizmente para melhor. Há alguns meses estavam a discutir alterações à lei, nomeadamente se uma mulher teria de ter a autorização do marido para abortar, discussões absurdas como estas. A situação é ainda muito nebulosa, mas de forma ilegal é perfeitamente possível fazer um aborto na Geórgia.
A entrada na União Europeia irá obrigar a ajustamentos na lei?
Tecnicamente a Geórgia ainda não entrou para a União Europeia, é ainda apenas um membro associado. Há três anos, a possibilidade de ter vistos gratuitos para viajar foi uma das melhores coisas que podiam acontecer a este país. Antes, era muito difícil obter um visto. Desde então, muitos jovens têm viajado, têm visto o mundo, trazendo de volta noções de liberdade e de igualdade com que o nosso país pode aprender. Só que o governo georgiano não gosta particularmente disso.
Quando é que está então prevista a entrada oficial na União Europeia?
Há um prazo, que termina agora em setembro, para tomar medidas necessárias para que o país seja reconhecido como membro efetivo. O problema não é só o direito ao aborto, são os direitos humanos, os direitos das mulheres. O Parlamento georgiano tinha quotas para mulheres, mas foram removidas o ano passado. Parece que estão deliberadamente a mudar a legislação para se parecer com a da Rússia. Há, por exemplo, a chamada Lei de Defesa dos Valores da Família, o nome diz tudo. E foi adotada da legislação russa.
Essa associação ao figurino russo quer dizer que ainda há um espírito soviético nas mentes de algumas pessoas?
É uma questão complexa. Se for ao centro de Tbilissi, parece que estamos numa cidade europeia. Eu tenho 39 anos, cresci durante a guerra civil, quando a União Soviética colapsou e estivemos num período de transição. Foi horrível. Tivemos um nível de criminalidade insano. Todos os tipos de crime, incluindo corrupção.
Como é que viveu esse período?
Não havia eletricidade, não havia comida. Às cinco da manhã ia com a minha avó e com a minha irmã para a fila do pão. Voltava para casa para dar um pão à minha mãe e ia para a escola com a minha irmã, com um frio extremo. Quando fiz 17 anos e fomos para a capital, conheci muitos artistas e fiz muitos amigos na comunidade gay, que ainda era muito perseguida. Mas havia muita esperança. Fizemos a revolução, começámos a mudar o país. O erro foi pensarmos que a liberdade era garantida. Mas aparentemente não.
O que aconteceu depois?
Quando este governo chegou, começaram aos poucos a mudar coisas e nem nos apercebemos como estávamos a andar para trás. Sinto-me muito triste, porque os jovens que hoje têm 15 ou 16 anos vão ver-se de novo metidos num país fechado. Há pessoas que estão na prisão apenas por terem participado nos protestos que começaram em dezembro passado. Aos poucos, as pessoas vão começar a sair da Geórgia. Parece a mesma narrativa do que aconteceu na Rússia e na Bielorrússia.
Voltando ao filme, é interessante que tenha colocado a sua história numa pequena localidade da província e não num centro urbano.
Foi ali que cresci. É a minha terra, onde muitas das pessoas que conheço vivem. É o lugar que me é mais querido. Tinha alguns meses quando a minha mãe me levou para lá e me deixou com a mãe dela. Tinha 16 anos quando engravidou de mim. É uma história trágica, mas estou-lhe muito grata, porque existo. Sempre tive uma relação por resolver com aquele lugar. Tenho um amor sem fim pela sua beleza, pela sua paisagem. Estudei cinema em Nova Iorque, mas sempre tive um desejo enorme de lá voltar e filmar lá.
O impacto do seu belo primeiro filme foi muito grande. Tornou mais fácil a produção deste segundo filme?
Estranhamente foi mais difícil, porque deixei de passar despercebida na Geórgia. Toda a gente que decide sobre os fundos me conhece. Não era possível fingir que o tema do segundo filme não era controverso. Não podíamos candidatar-nos a nenhum fundo público. Estivemos literalmente a esconder-nos de que estávamos a fazer este filme. Mas eu sabia que era possível fazê-lo num local onde ninguém tinha feito um filme antes.
Pode falar um pouco da cumplicidade com a sua atriz?
É uma atriz incrível. Tive imensa sorte de a encontrar. Ela foi uma atriz juvenil, começou a representar quando ainda tinha quatro anos. Cresceu no teatro, é a atriz principal de uma grande companhia de teatro na Geórgia, é uma das grandes atrizes do país. Tem uma grande experiência, tecnicamente é capaz de fazer qualquer coisa. Posso estar muito agradecida, porque ela foi sempre muito aberta, muito direta. E muito paciente comigo.
O seu visual é muito próprio, filma como mais ninguém pensaria em filmar. Pode falar um pouco sobre a linguagem visual do seu filme?
Não sei se poderei falar em opções visuais, com toda a honestidade. Quando começo a trabalhar num filme, visualizo as personagens, elas começam a existir na minha cabeça. Vou confiando nas minhas intuições. E trabalhei com um diretor de fotografia muito talentoso, que também é um amigo muito chegado, é como um irmão. Sou sempre muito incoerente quando começo a escrever um guião e por isso falo muito com ele. Preciso que os meus colaboradores mais próximos entrem no meu mundo mais íntimo.
Podemos falar em alguma inspiração em especial?
Durante a covid comecei a olhar para a forma como as pessoas jogavam jogos online, sobretudo jogos japoneses, como os do Hideo Kojima. Os universos que ele cria são muito cinemáticos. Comecei a pensar no ponto de vista. O ponto de vista nos jogos é muito diferente do ponto de vista no cinema. O cinema não usa a sua plasticidade e todas as suas possibilidades, na maior parte das vezes, não sei porquê. Quando acabei o filme os produtores não perceberam muito bem, estavam à espera de algo muito mais previsível.
De onde vem a personagem da criatura, que junta uma camada de mistério a um filme que tem um tom geral muito realista?
Honestamente não sei explicar. Estava a escrever o argumento e ia contactando com algumas mulheres. Ia ouvindo as suas histórias, algumas muito difíceis, ia para casa escrever, depois ia dormir, mas aquelas histórias continuavam a existir. Eu não posso mudar nada. E não confiro nenhuma missão heroica ao cinema. Tenho a consciência de que na realidade não mudamos grande coisa.
Mas aquela criatura vai ganhando protagonismo ao longo do filme...
A fórmula começou a ser para mim muito psicológica e emocional. Comecei a sentir que há esta aceitação da impossibilidade de mudar e de que não somos heróis. E de que há experiências que não podemos abandonar porque vão ficar sempre connosco. Foi assim que aquela criatura começou a existir. Alguns produtores pediram-me para explicar, mas sempre recusei. Eu acredito em não perceber, em não responder a todas as questões. Como espetadora, preciso de espaço, sem que me digam o que sentir, ou mesmo o que saber.
E agora, tem outros projetos?
Tenho, mas neste momento não é possível fazer filmes na Geórgia. Tecnicamente os fundos existem, mas, na prática, não. Temos um programa inteiro de censura por que temos de passar, para nos podermos candidatar. E para trazer dinheiro de fora é preciso justificar imensa coisa. Neste momento não tenho suficiente invisibilidade para fazer um filme sem arriscar a segurança de muita gente. Tenho de aceitar isto. Acho que vou ter de fazer filmes fora do meu país, mas tenho esperança, apesar de odiar esta palavra.