Nascida em Lisboa, filha de cabo-verdianos e crescida na Suíça, Denise Fernandes estreia-se na longa-metragem de ficção, após várias curtas, com “Hanami”, vencedor de um importante prémio no Festival de Locarno. O filme relata o percurso da jovem Nana, entre o abandono forçado em bebé e o reencontro, já adolescente.
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Fazer este filme foi uma forma de regressar às suas origens?
Podemos dizer isso, simplificando, mas também foi a concretização de um desejo. Como sou da diáspora e cineasta, queria dar imagens a Cabo Verde. Cabo Verde tem um imaginário, mas não tem muitas imagens. Como pessoa da diáspora tentei imaginar muito forte esse país, mas sem poder ver um filme na televisão ou ver fotografias feitas por um fotógrafo local, como outros países africanos têm. Eu cresci com a falta de imagens de Cabo Verde. Tive o desejo de oferecer essas imagens que eu própria não tive.
O que é que os seus pais lhe diziam de Cabo Verde?
Eu sou cabo-verdiana, faço parte da diáspora. Cabo Verde está no meu imaginário. Mas os meus pais não tinham muito tempo para me falar de Cabo Verde. Tinham outras prioridades. As informações que recebia de Cabo Verde eram simples e muito fugazes.
Que ideia fazia então do território, no seu imaginário?
Uma das coisas de que me lembro de ouvir falar muito era da escassez de água. Comparando com a Europa onde eu vivia, a maior diferença era a relação com a falta de água, com a falta de chuva. Nas minhas primeiras memórias, lembro-me de falarem da falta de água. O que acaba por estar presente no meu filme. A espera da água e a forma como a falta de água influi nas dinâmicas das pessoas da ilha acaba por ser muito relevante.
Há algo de si na personagem da Nana?
Acho que há algo de mim em todas as personagens. Se eu fizesse uma análise, dentro de cada personagem descobriria uma parte de mim. Mas a Nana é o espelho oposto da minha vivência, o que não quer dizer que não haja uma conexão. A Nana é uma menina da ilha e a minha identidade construiu-se no contexto da diáspora. Mesmo quando uma personagem pode parecer oposta, pode também ser espelho de uma própria reflexão. No meu caso, através da Nana, imaginar o que seria viver na ilha.
A história que construiu tem várias camadas e vários registos, de mais realistas a mais poéticos. De onde vêm todos estes elementos?
A ilha do Fogo permite muito bem projetar um imaginário sem limites, pelas suas características, elas próprias quase fantásticas. Isso convidou-me a ter uma abordagem sem fronteiras, do ponto de vista da imaginação e de tudo o que podia acontecer na ilha. E eu própria cresci num contexto de diáspora cabo-verdiana, mas com referências muito diferentes. Foi essa a maneira que me aproximou do cinema. Eu levo tudo para o cinema, os meus livros, as minhas vivências, tudo cabe no que eu conto.
Ao passar mais tempo em Cabo Verde, descobriu um território com muitas histórias para contar?
A resposta mais simples seria que sim. Mas para essas histórias serem contadas precisamos de estruturas que apoiem os artistas locais. O cinema não é só um sonho, vive de coisas muito concretas, de uma estrutura, para que os filmes sejam feitos. O cinema é uma das artes mais complexas e menos autónomas. A indústria do cinema em Cabo Verde está numa fase ainda muito inicial. Mas prometedora.
Na sua equipa técnica trabalhou com técnicos locais?
O filme é uma coprodução. Por consequência trabalhámos com uma parte da equipa de Portugal, uma parte na Suíça, nomeadamente na pós-produção, e quando estávamos em Cabo Verde envolvemos a população local, sim.
Como é que escolheu as duas jovens que interpretam a Nana ao longo do filme?
Já me disseram que eu tive muita sorte em encontrar duas Nanas muito parecidas e a mãe e a filha também. Mas não foi sorte, faz parte do trabalho do cinema. Mas também houve algum alinhamento cósmico. Foi um trabalho de anos.
A mais pequena aguenta uma boa parte do filme nos ombros dela…
Fomos com uma equipa muito pequena a um jardim de infância, e na realidade houve um bocadinho de sorte, porque a primeira menina que me chamou à atenção acabou por ser mesmo a Daílma. Mesmo assim, tomámos a decisão de irmos a todos os infantários, e são mesmo muitos, foi um trabalho de semanas. Quando percebi que era ela a minha criança, o desafio foi encontrar a Nana adolescente.
Quais foram os critérios, só de semelhança física?
Eu queria que fosse uma pessoa fisicamente compatível. Nos filmes há por vezes a liberdade de mudar um bocadinho a imagem, mas eu tinha a ambição de acreditar que essa fosse mesmo a Nana que cresceu. Fomos à procura na ilha de meninas parecidas com a Daílma, e encontrámos a Sanaya, uma menina incrível que tinha doze anos quando filmámos.
Como é que tem sido apresentar o seu filme em tantos países e receber prémios tão importantes?
Tem sido um imenso privilégio. Foi algo totalmente inesperado. Nem houve tempo para qualquer tipo de expetativa. Estava só focada em terminar o filme da melhor maneira possível. E o filme ainda não parou. Está a ser literalmente uma volta ao mundo. É muito especial perceber que o mundo é muito grande e, ao mesmo tempo, muito pequeno.
E está a mostrar Cabo Verde ao mundo…
É uma história construída em ilhas remotas, que em muito países não conhecem. Na maior parte dos casos nunca tinham visto imagens associadas a Cabo Verde. É uma honra poder apresentar uma parte, pequenina, de Cabo Verde, porque as realidades são múltiplas. Uma história é uma história, as pessoas recebem a história.
E agora, para onde é que vai o seu cinema?
Eu não sei para onde vai o meu cinema. Ainda não tive tempo para pensar nisso. Faltava apresentar o filme em Cabo Verde, aconteceu há duas semanas, agora vai estrear em Portugal. Ainda estou com o filme. Talvez todas estas experiências me conduzam à resposta de saber para onde vai o meu cinema.