<p>Uma descida aos Infernos poderá ser uma viagem similar à de Dante. Uma ida a um sítio do mundo onde os contrastes façam reflectir na dádiva de se ter nascido longe de um qualquer tormento. Em Bombaim, a realidade desconcertante começa por se manifestar nos sentidos. </p>
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Na baía onde o luxuoso Hotel Taj Mahal foi construído há 105 anos, em vez de maresia, cheira a esgoto. Uma pestilência que provoca um nó górdio nas entranhas, e se torna ainda maior quando ao espreitar o areal se avista um mar de lixo.
Pela avenida e à porta do Hotel páram limousines, das quais saem aprumados homens de "smoking" e mulheres de saris dourados que logo se eclipsam no interior do esplendoroso edifício. No exterior, ouve-se o chilrear lancinante das gaivotas.
No passeio, um homem cuja pele se estende nos ossos como palimpsesto, quase sentado, de cócoras. Absorto. Não olha e não vê. Não é visto por quem passa. Não se mexe. E, contudo, um fio de urina saído pano que tem enrolado à cintura. A poucos metros, a majestosa Porta da Índia e cães bem tratados que farejam o tronco de uma árvore próxima.
No interior do Taj Mahal há paredes douradas e um fausto monárquico, cenário de um sangrento atentado terrorista, em Novembro de 2008. Nessa ocasião, os ataques perpetrados em Bombaim fizeram 155 mortos e 327 feridos.
Fica impressa na memória a imagem da minúscula criança que lavava com água suja numa lata e um pedaço de sabão azul a minúscula t-shirt no imundo rebordo do passeio; as infernais buzinas do romper da aurora ao anoitecer; o ódio cuspido entre taxistas hindús e muçulmanos que, anos a fio, pernoitam no banco de trás da viatura; os que dormem, acordam, comem, defecam, urinam e adormecem. De cócoras. Na rua do Hospital.
E, por fim, as torres do Silêncio onde os zoroastros colocavam os mortos para que os abutres os devorassem, dando continuidade ao ciclo a vida e pensa-se que tudo é tão brutalmente menos feroz nas descrições que Rushdie faz da sua Bombaim.