Peça inaugural do Festival DDD, no Teatro Rivoli, no Porto, não podia ter sido mais assombrosa.
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A efemeridade das artes performativas e a sua fragilidade é parte da sua beleza. Alguém que não tenha estado esta terça-feira à noite no Teatro Rivoli, no Porto, não poderá entender na totalidade o que ali aconteceu. Um público faminto de cultura encheu o grande auditório do Teatro para ver o que se sabia ser apenas um resgate ao fado batido, essa tradição do início do século passado que lamentavelmente entrou em desuso, ali recuperada pela dupla criativa Jonas&Lander.
Comecemos pelos intérpretes de Bate Fado, porque é preciso que se nomeiem um a um: Tiago Valentim, na viola; Yami Aloelela, no baixo; Acácio Barbosa e António Duarte Martins, nas guitarras portuguesas, todos únicos. Poucos músicos que conseguem tocar e sapatear ou tocar e dançar ao mesmo tempo. Um exercício de virtuosismo que criou alguma dúvida na sala sobre se a música estaria a ser tocada ao vivo. Estava. E com qualidade. Para os amantes do fado, foi um concerto fenomenal.
Depois, a estrela da noite: Jonas, dono de uma voz e carisma comoventes. Apesar do encore com o "Fado do Hilário" ter emocionado grande parte da plateia, é impossível não recordar a cena em que, encarnando Carlos Cano, Jonas cantou ataviado no seu colete de franjas "María La Portuguesa", fazendo um espetáculo de variedades com os músicos.
Quanto aos bailarinos, ainda que no espetáculo essa noção seja um pouco fluída, Lander Patrick mostrou uma técnica imaculada. As adaptações de passos de corridinhos e de fandangos são de difícil execução, pela sua velocidade, e ele conseguiu fazê-los com um rigor extraordinário. Como cantou Jonas a dado momento, "gosto do fado batido quando é feito rigor".
Patrick Lander e Lewis Seivwright, colaborador assíduo das criações da dupla, têm uma dinâmica muito interessante em palco.
A surpresa do elenco chegou também com Catarina Campos e Melissa Sousa, duas bailarinas conhecidas do hip hop nacional, que conseguiram de forma muito competente executar coreografias muito verticais e fora da sua linguagem habitual.
Quanto à investigação, ela mostra todas as influências de que o fado bebeu, desde as orientais, africanas e americanas. E coreograficamente essas referências estão muito bem plasmadas em pormenores como a posição das mãos, quando batem palmas, ou a forma como sapateiam quase sempre em golpes e tacões. Conseguir a sincronia durante quase duas horas de espetáculo a sapatear é notável, denuncia horas e horas de trabalho.
A cenografia com um coreto - local onde se dançam os bailes - com o recurso a um cristianismo literalmente insuflado, e aos seus despiques com as tradições pagãs, dá outro nível ao espetáculo. A portugalidade é tudo isto e este espetáculo promete ter longa vida e carreira internacional.
Algumas cenas são um pouco dilatadas temporalmente, mas as imagens criadas em cena e os desenhos de luz, muito bem trabalhados, compensam a duração. Não queiramos ser franceses nem belgas, nem outra coisa que não seja ser portugueses. Jonas e Lander provaram que temos tudo.