
Atriz Diane Kruger
Foto: DR/Divulgação
Diane Kruger tem um duplo papel no novo filme de David Cronenberg.
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Já está nos cinemas a nova obra-prima de David Cronenberg, “The Shrouds – As Mortalhas”. A história, sobre uma tecnologia inovadora que coloca câmaras dentro dos caixões dos nossos entes queridos, surgiu ao mestre canadiano após a morte da esposa, com quem partilhava a vida há várias décadas. Ao lado de Vincent Cassel, Diane Kruger tem um duplo papel. A atriz alemã esteve a conversar com o JN.
Quando é que entrou pela primeira vez no mundo do David Cronenberg?
O primeiro filme dele que vi foi “A Mosca”, ainda era miúda e traumatizou-me para toda a vida. Sempre pensei que ele era um pouco louco, o universo dele é tão único. Quem é que podia inventar uma história como esta? É raro um ator ter a oportunidade de trabalhar com um realizador que praticamente inventou um género só dele. Admiro-o pela visão dele e pelo corpo da obra dele, que é tão consistente ao longo da carreira. Mas nunca sabemos o que vamos encontrar num filme do David Cronenberg.
Neste filme tem dois papéis, como é que abordou este trabalho? As personagens são muito distintas.
São ambas baseadas em pessoas ligadas à vida do Cronenberg. No primeiro encontro que tivemos ele falou-me destas duas personagens. Nas cenas em flashback, onde represento a mulher dele que morreu, não havia grande trabalho de composição a fazer. Já a Becca foi divertido criá-la, é tão excêntrica, é mesmo uma personagem.
Enquanto atriz, e ex-modelo, o corpo é uma ferramenta de trabalho. Como foi interpretar personagens com partes do corpo em falta, digamos assim?
É verdade que o corpo é a minha ferramenta. Mas as doenças e as anomalias físicas são situações que podem acontecer a toda a gente. O facto de nessas cenas também ter de estar nua fizeram com que me sentisse ainda mais vulnerável. Nua, em todos os sentidos. Não posso dizer que tenham sido os dias mais fáceis e agradáveis das filmagens.
Nudez não é algo que tenha feito muito na sua carreira, foi o Cronenberg que a fez sentir mais segura?
A nudez é uma parte essencial desta história, que nos fala do corpo. É o corpo que faz de nós seres humanos. Estou mais velha agora, nunca tinha feito um filme sobre este tema, sobre a morte e o luto. Não pensei duas vezes. Bom, até pensei. Mas claro que quis fazer o filme. E essas cenas não são sexy, não há esse tipo de exploração.
O que pensa desse novo cargo nas equipas que se chama coordenador de intimidade, para as cenas de sexo e de nudez?
Acho que nos libertam da ansiedade de ter de fazer essas cenas. Ficamos a saber exatamente o que pode ser visto do nosso corpo. Temos de assinar um contrato que tem cláusulas muito divertidas sobre o que pode ou não ser visto.
O filme é sobretudo sobre o luto, sobre a forma como se lida com a perda. Enquanto atriz e ser humano, até que ponto se consegue desligar do tema?
Já não me posso dar ao luxo de levar o filme para casa. É um alívio, quando chego a casa e ter uma criança, ajuda-me a voltar à realidade. Antes, era muito mais difícil desligar-me das minhas personagens.
Como é que sentiu o David Cronenberg, sendo um filme tão pessoal para ele?
Esta história está claramente ligada a uma perda que ele sofreu. Eu sei que ele estava a ver-me interpretar o papel da mulher dele que faleceu. É claro que já foi há alguns anos e ele tentou desligar-se para poder fazer o filme, mas é algo de traumático que ele viveu. É a perda dele, o luto dele, foi a ele que eu me entreguei.
O David Cronenberg disse-lhe alguma coisa em especial que a tenha tocado sobre esse lado pessoal da história?
Disse-me que sabia que ela estava a morrer e a acompanhou ao longo da doença dela. Mas que quando morreu e a viu sozinha no caixão, a ideia de que ela iria estar fisicamente sozinha foi o mais insuportável para ele.
O filme faz-nos pensar no que acontece ao nosso corpo quando morrermos. Foi algo que lhe passou pela cabeça, durante a rodagem?
Pensei mais no tipo de relação em que queremos estar, na nossa vida. É claro que pensei no que é a perda de alguém que amamos. Mas o David e a mulher tiveram tanta sorte em passar juntos quarenta anos. Eu quero ser cremada quando morrer, a ideia de apodrecer debaixo da terra é terrível para mim.
Outro aspeto do filme é até onde as novas tecnologias nos podem levar. Qual a relação que tem com as tecnologias?
A minha vida está muito longe de todas essas coisas, com a exceção de ter um telefone e de poder falar com as outras pessoas. Mas estou muito contente de o ter agora desligado. O telefone ou outras tecnologias não afetam muito a minha existência.
As teorias da conspiração são cada vez mais frequentes e influentes nas nossas sociedades, como vemos no filme. Como é que vive com a situação?
É uma loucura. Eu vivo nos Estados Unidos, pode imaginar. Basta um louco qualquer publicar uma coisa na internet que se torna logo verdade. Eu quis fazer um passaporte alemão para o meu filho mas alguém escreveu na Wikipédia que eu tinha nacionalidade norte-americana, o que não é verdade. Mas a senhora da embaixada não acreditou, porque tinha lido na internet. Fui obrigada a arranjar um papel em como nunca tinha pedido a nacionalidade americana!
Como é que decorreu o trabalho com o Vincent Cassel?
Estávamos os dois a trabalhar em França, quando fui convidada para fazer este filme. Foi perfeito, porque já nos conhecíamos muito bem. Ele ajudou-me muito durante a filmagem, em especial nas cenas mais difíceis. Foi um grande parceiro, esteve sempre lá para mim.
E como é que o David Cronenberg trabalha?
Há uma regra absoluta, que é não podermos mudar uma linha do diálogo. Não há qualquer espaço para improvisação. Ele dirige-nos. Gosta que saibamos os diálogos e que possamos propor como é que as coisas se vão passar. Depois faz os ajustamentos que achar necessário, mas não nos quer controlar, percebe o que quero dizer.
Quando viu o filme, ficou impressionada com o visual?
Fiquei de boca aberta. O David não deixa os atores aproximarem-se do monitor. Não tinha visto mesmo nada do filme, antes da primeira projeção. Mas por outro lado o filme é exatamente o guião que ele tinha escrito. Foi o filme que eu li. Mas é verdade que fiquei impressionada com todas as camadas que o filme tem e que não vira necessariamente durante a rodagem.
Trabalhando em ambos os lados do Atlântico, como é que vê a diferença entre as máquinas de cinema americana e europeia?
São dois mundos diferentes. Em França, que conheço melhor, os filmes são financiados de uma forma muito diferente dos Estados Unidos. O cinema é considerado um bem cultural, o estado dá dinheiro para o cinema, as televisões também. Na América, o cinema é um puro negócio. Muda por completo a configuração.
