Cantor dos Cais Sodré Funk Connection estreia-se a solo com "Diz à Mãe que está tudo bem". Segue-se uma tour, que passa pelo MEO Kalorama.
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O álbum chama-se "Diz à Mãe que está tudo bem" e não podia ser mais pessoal ou próximo do coração do seu autor. Silk Nobre, ou Fernando Nobre, tem já uma longa carreira musical, mas esperou por 2023 para lançar a sua estreia a solo, com uma mensagem forte e sonoridades onde o groove, funk, semba, zouke e afro soul se cruzam com fluidez. Ao JN, explica como o objetivo é ser reconhecido, "não pelas coisas que nos dividem; mas pela música que nos une".
O cantor, que é também encenador, ator e músico, nasceu em Moçambique em 1971, filho de pais cabo-verdianos, o mais novo de uma família de seis, tendo vindo em criança para Portugal, poucos anos depois do 25 de abril. Por cá, iniciou a sua carreira nas artes e na música, que inclui passagens pelos Funky Messengers, Mister Lizard e Cais do Sodré Funk Connection, grupo associado às noites da famosa Rua Cor de Rosa em Lisboa.
No seu primeiro trabalho a solo, Nobre escolheu abordar um dos temas mais fortes da memória coletiva nacional: os portugueses que regressaram após a revolução de 1974, na descolonização das antigas colónias - os retornados. Ao JN, Fernando explica como chegou aqui; e como este disco é sobre adaptação, incompreensão e resiliência. Sobre "coisas desaparecidas e desafios do exercício da democracia". Sobre "sarar feridas" enquanto se dança.
A sua ligação com a música, começa por contar, veio de muito novo: ainda em África, ouvia artistas como Miriam Makeba, James Brown, Fela Kuti, Miles Davis. Desde que chegou de Moçambique, começou a cantar "na Igreja Batista, num coro gospel", explica, remetendo a uma infância passada na Zona J - onde se mantinha, na sua mente, a ideia de regressar à terra natal. A mesma ideia e a mesma nostalgia que levariam em parte a este disco sobre retornados - ou, como prefere dizer, "sobre os retornados que nunca foram; só vieram".
"Nós tínhamos vindo para Portugal mas eu pensava regressar a Moçambique. Então, comecei a devolver uma quantidade de talentos com esse foco. Mas acabei por ir ficando ao longo destes anos, como muitas pessoas também", adianta. Depois da adaptação, Lisboa e Portugal tornaram-se casa e pelo caminho, Nobre foi desenvolvendo o amor e a curiosidade em relação a tudo o que era artes performativas, teatro, dança, street dance: o lado cénico da vida.
O percurso levou-o ao Conservatório, influenciado até parcialmente pelo sonho retratado na série "Fame". onde as pessoas de todas as culturas e origens se uniam e integravam através da arte, linguagem universal, como nos conta. Depois, houve passagens por Londres, por um álbum com os Funky Messengers. pelos Shout com Sara Tavares, por Mr. Lizard; por realizar mais de 50 peças na Companhia de Teatro da Garagem, onde fez parte do elenco fixo durante 10 anos; pelos Funk do Boi. "Foi sempre uma aprendizagem que veio da minha curiosidade em tentar comunicar. Em tentar procurar sempre ser melhor na música, no teatro, na dança, na expressão, na poesia, na literatura", explica.
Quando o projeto Mr. Lizard acabou, chegaram os Cais Sodré Funk Connection, coletivo que começou na noite com covers e que encontrou um sucesso inesperado, muito também pela sua presença e voz em palco, pelo funk e energia. O grupo chegou a gravar três discos.
"Para viajar pelo mundo"
Terminada essa fase, chegou esta: o novo caminho a solo. Precedido já por vários singles, entre os quais "I am back (back to Africa)", o disco "Diz à Mãe que está tudo bem" foi construído com Ivo Costa e Pity (Rui Pedro Pity, dos Black Mamba), e está carregado de memórias e de histórias.
Permitiu a Silk encontrar Armando Tito, que tocou com a Cesária Évora mais de 20 anos; e Miroca Paris que a acompanhou ao longo dos últimos tempos; bem como reencontrar e partilhar uma música com Sara Tavares, "com quem cultivamos amizade e cumplicidade que faz deste disco uma pérola muito nossa", diz. Os músicos Gui Salgueiro, Jéssica Pina, Ruben Luz e Tomás Marque também participam.
O tema dos "retornados que nunca foram" surgiu porque sentiu que era altura de falar sobre o passado, sem receio. "Porque a história dos retornados é uma história de amor, entre pessoas. De filhos que nasceram ao som de ritmos africanos. Algumas tornaram-se histórias de amor impossível, da distância. De saudades de África, ou de mágoa". No fundo, tentou "falar de coisas que doem, mas fazê-lo de forma feliz". E explica: "isto para mim não é uma catarse, mas é um disco que quer fazer a terapia dessa mágoa, de forma positiva, não só para mim, mas para milhares de pessoas", garante.
O autor quis também evocar a cultura africana, que se cruza com a portuguesa na história a perder tempo. "E eu cresci com essa cultura, do black power, do rasgo, da música, da intensidade, da dança, da alegria, festa", reitera, lembrando que não quer ser conhecido "pelas coisas que nos dividem mas pela música que nos une. E isto é um projeto em Portugal, mas é um projeto para viajar pelo mundo. Para celebrar a cultura portuguesa, com influência africana. A cultura de dança, de música, de eletrónica. De pop, afro, funk, soul"
Nobre garante ainda que este será o primeiro disco de muitos. "Eu decidi fazer este projeto de soul porque tenho histórias para contar", conclui. O músico atua no Meo Kalorama deste ano a 31 de agosto, parte de uma tour que anunciará mais datas em breve.