Fulgor Quotidiano é uma coleção singular criada pelo alfarrabista Ricardo Ribeiro e pela artista plástica Catarina Domingues.
Corpo do artigo
Reencontram-se nos livros (e na música e nos filmes e nas pinturas) e por causa dos livros encontraram-se um ao outro, reconhecendo-se. "Como se o primeiro olhar fosse de descoberta e reconhecimento ao mesmo tempo", escreveram no livro que inaugura a coleção Fulgor Quotidiano, que acaba de completar dois anos ao ritmo "louco, impensável" de um livro publicado por mês na editora independente Sr Teste (que é igualmente um blogue e um alfarrabista), que também lhes pertence.
Ao todo, saíram, até agora, 20 obras-objetos-de-arte, oito das quais já esgotadas. São textos essenciais, escolhidos com a minúcia de quem é leitor desde sempre, de quem se fez grande a ler mentores como Rimbaud, Michaux ou Blanchot. Livros com o tamanho de um bolso e a beleza de um monumento. "Tinha tudo para correr mal, mas está a correr muito bem."
Ricardo Ribeiro tem pouco mais de 40 anos, é músico, toca clarinete baixo, e é alfarrabista desde a adolescência, tem às vezes a sensação de que o é quase desde que nasceu. Catarina Domingues entrou há pouco na casa dos trinta, é artista plástica e divide com Ricardo o amor pela literatura que lhe devolve quem é - e a vida. Ambos escolhem os textos e os autores, ela compõe-nos e ilustra-os. "Os livros que publicamos podiam fazer parte da nossa biblioteca particular", dizem, ao JN, naquela forma comungada de falar e pensar e sentir. Conheceram-se em Paris, em abril de 2019. "Fulgor quotidiano", a coleção que alberga, além dos autores já mencionados, fortunas como a poesia da espanhola Ada Salas ("O lugar da derrota"), ou uma espécie de manual de sobrevivência de Kafka ("Considerações sobre o pecado, o sofrimento, a esperança e o verdadeiro caminho") ou ainda uma quase viagem interior de Octávio Paz ("A estação violenta"), "é a celebração desse encontro e destes escritores". Afinal, qual é a probabilidade de duas pessoas que têm como referência, "quase como obsessão", exatamente os mesmos autores tropeçarem no caminho uma da outra? "Como é que Rimbaud ou Whitman escreveram para nós há mais do século?", perguntam. E respondem. "Claro que se criou logo uma aliança." A literatura faz isso, junta pessoas.
Os livros desta coleção são propositadamente pequenos, "para poderem ser transportados", e deliberadamente simples. "Não têm artifícios, são límpidos e acessíveis, práticos mas cuidados."
Bíblia de pensamento
Dois anos depois desse instante inicial que lhes tornou comum o caminho, acontece-lhes agora haver autores portugueses que querem fazer parte deste mapa literário que tem como valor primordial a "liberdade íntima". E autores que eles próprios fazem questão de juntar a esta "comunidade", como Maria Gabriela Llansol (1931-2008) ou Ernesto de Melo e Castro (1932-2020), "escritores que nunca são apenas escritores, acumulam dimensões, são artistas". No fundo, é um conjunto de pessoas, que escreve e que lê, "unido pela mesma sensibilidade", que está a construir "uma bíblia de pensamento".
O projeto não passou ao lado de livrarias como a Flâneur, no Porto, ou a Escriba, em Almada, que hoje também acompanham esta coleção. "São livreiros especiais", dizem Catarina e Ricardo. "Nenhum de nós tem clientes, todos temos leitores. E é isso que faz a diferença." Ou, como ambos escreveram no livro que dá nome à coleção, ele próprio repleto de pistas para outras leituras: "Guardo no coração os livros que me abriste".