"O crocodilo", um conto obscuro de Fiódor Dostoievski escrito em 1865, relembra-nos a grandeza do escritor russo.
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De visita a uma galeria comercial no centro de São Petersburgo com o objetivo de observar de perto um crocodilo em exposição, um funcionário público dá por si a ser subitamente engolido pelo animal.
O que seria o final trágico em qualquer história convencional é, para Fiódor Dostoievski, apenas o ponto de partida para uma narrativa onde o absurdo e o risível não excluem a crítica social e política.
De forma milagrosa, Ivan Matveich escapa ao destino fatídico, ao ficar preso dentro do crocodilo, surpreendentemente espaçoso e oco. Como o proprietário da besta se recusa a seguir as prédicas da esposa para rasgar as suas entranhas, o improvável hóspede passa a encarar a sua nova casa com surpreendente entusiasmo, traçando de imediato grandes planos. Não só despacha o serviço que até então estava reservado ao seu escritório, como procura tirar partido da sua nova condição para se tornar uma espécie de condutor de massas e sair do anonimato em que sempre vivera.
Publicado em 1865 na revista “Epoch”, “O crocodilo” não poderia contrastar mais com a atmosfera pesada que associamos às narrativas de Dostoievski, marcadas pelo peso dos crimes e pela tirania do Estado.
Bem mais próximo do registo de Nikolai Gogol, outro gigante das letras russas, este conto serviu de pretexto para que o autor de “Cadernos do subterrâneo” procurasse fazer um ajuste de contas com alguns dos protagonistas da vida literária e política de então.
Crítico da excessiva influência de outras nações na economia da Rússia imperial, Dostoievski tece reparos subliminares aos fundamentos em que esta assentava, lesivos dos interesses nacionais. Assim, não será mera coincidência que o dono do crocodilo seja um alemão, que acaba por lucrar com a situação mais do que qualquer outro, pois o interesse popular que o caso insólito desperta leva-o a duplicar o custo das visitas.
“Ivan Matveich, como verdadeiro filho da pátria, deveria regozijar-se e orgulhar-se de ele próprio ter duplicado o valor de um crocodilo estrangeiro, e talvez até triplicado”, diz o superior hierárquico do infeliz deglutido, perante a estupefação do narrador da história.
Se ao leitor de hoje escapam essas minudências políticas de outra época, embora seja possível ainda descortinar equivalências com os tempos atuais, o invulgar desembaraço narrativo do ficcionista é, por si só, razão suficiente para justificar a leitura de “O crocodilo”.