Diz-se que os escritores, quando partem, continuam vivos na sua obra, e no caso de Manuel António Pina só pode ser verdade, prova, afinal, de que algo permanece; mas o que, por estes dias, mais me falta é o Pina-ele-mesmo, com a sua voz, o seu sorriso, a sua presença. Tenho estado à volta das palavras dele (um texto para aqui, um depoimento para ali). Mas onde está o Pina? Em que lugar real? No Convívio? No Orfeuzinho? Passa à porta do Bugatti, daqui a meia hora?
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Às vezes, ainda penso que ele está apenas atrasado, ainda mais atrasado do que sempre chegava, como muito bem sabe quem alguma vez marcou um encontro com ele. Às vezes, toca o telefone e ainda penso que é ele, a contar aquela anedota ou a última história da Conceição, a empregada doméstica, ou então a ler a crónica acabada de fazer ou apenas a avisar que o Benfica estava a perder, não fosse eu não estar a ver...
"Não entro mais no Convívio", diz um dos amigos do grupo que ali convivia regularmente. Mas se o problema fosse esse... A "ardente perfeição da sua ausência" (Sophia Mello Breyner) está por todo o lado, não é um conceito vago, mas algo assustadoramente concreto, "uma coisa viva e palpável / tocando-nos levemente com receio de acordar-nos".
Muitos falaram já do talento literário e também da sua "sabedoria de tudo", da generosidade ou da humildade que acrescentava a sua grandeza, eu ponho também nessa lista a sua disponibilidade total e permanente para a brincadeira e o riso, uma espécie de "estado de infância", que era, talvez, a nossa maior afinidade, entre tantas outras. Se nos tratávamos pelos "nicknames" da infância ("Estás bom, Varito?" "Tudo bem, Nelito. E tu?") era porque naquelas horas sem fim em que discutimos futebol, jogámos bilhar, pregámos partidas, rimos e brincámos, enfim, reencontrávamos os rapazes que fomos. E não foi ele que escreveu: "Parece que crescemos mas não / somos ainda do mesmo tamanho"? Pois era nesse naco de infância ciosamente preservado que a poesia fazia o seu ninho, e também a literatura infantil (que, tal como ele as entendia, não eram coisas diferentes).
E agora, Nelito? Diz-me o que é feito de ti. "O que não foi dito para sempre calado"? Ou "a gente vê-se um dia destes por Aí"?