Com uma homenagem ao ator João d'Ávila, terminou neste fim de semana mais uma edição do Festival de Poesia de Vila Nova de Foz Côa. Ao JN, o fundador e diretor do festival, Jorge Maximino, assumiu as dificuldades crescentes de organizar um evento cultural fora dos grandes centros.
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Muito antes de os festivais literários cobrirem a totalidade do território nacional, com eventos para todos os gostos e feitios, já Vila Nova de Foz Côa organizava o seu Festival de Poesia. Por lá passaram nomes cimeiros como Natália Correia ou Manuel António Pina e continuam ainda a passar, ainda que as dificuldades orçamentais obriguem a organização a grandes esforços.
Que balanço faz da edição deste ano do festival?
Fazemos todos um balanço positivo da edição deste ano. Foi uma realização intensíssima, com muitas sessões para públicos diversos, nas várias áreas que o programa integrou (da literatura, música, cinema, teatro). Embora tivesse havido momentos com pouca afluência de público nalgumas sessões de leituras pelos poetas convidados, a linha contínua de adesão confirma também para a população a importância deste Festival, iniciado há exatamente trinta e três anos. Houve momentos altos, inesquecíveis para os que a eles assistiram e neles participaram, três especialmente: O momento alto e com maior adesão do público foi sem dúvida a sessão de homenagem ao ator João d"Ávila, que se impôs, para além dos testemunhos e leituras (comuns nas outras homenagens), como espetáculo, indo ao encontro afinal da preferência do homenageado, que é um ator com o relevantíssimo currículo, conhecido de todos e, coisa rara, um dos únicos que tem divulgado a poesia portuguesa no país e no estrangeiro há mais de quatro décadas. Lamentámos por isso a ausência de representação do senhor ministro da Cultura e também do Presidente da República. Ele não merece isso... De par com a surpresa com as sessões nas escolas, outro momento alto do Festival foi o espectáculo "FDP- Filhos da Pátria", performance poética apresentada no segundo dia do Festival pelo Sindicato do Credo, em estreia neste programa. É um trabalho experimental arrojado, a partir de textos de poetas malditos, cuja estrutura integra fusão texto-música-vídeo-performance-voz, em vários suportes que asseguram um espetáculo poético invulgar, fortíssimo pela forma como trabalha a ironia. Trata-se de uma aposta totalmente experimental, sem concessões de qualquer ordem, com a garra que só encontramos nos textos dos autores malditos, uma verve sedimentada em imaginários de abismo e desespero, marcas afinal de grande atualidade social. Espero que possam desenvolver esse trabalho e que seja mais divulgado porque não conheço no país nada que se aproxime à exigência estética do Sindicato do Credo, que tem já, por essa razão, uma relação privilegiada com este Festival de Poesia.
A vertente escolar teve um grande peso na edição deste ano. Com que impressões ficou dessas sessões?
Essa foi uma das grandes novidades da edição deste ano. Surpreendeu bastante: foi um momento especial o que teve lugar nas escolas, com elevada adesão dos alunos e professores, encontros e debates que se prolongaram todos para lá da hora prevista, com participação extraordinária dos estudantes, questionando os escritores, atores e músicos, obrigando alguns escritores a improvisos, tendo ficado algumas transformadas as sessões em verdadeiros ateliês sobre escrita poética ou sobre poéticas da ficção, por exemplo, com Teresa Martins Marques: numa sessão sobre o seu romance A Mulher que Venceu Don Juan. Talvez tenha sido também pelo facto de tratar do primeiro romance em Portugal que teve a sua primeira versão no facebook.
O poeta Zetho Gonçalves, por exemplo, acabou uma sessão com os alunos a plantar um cato num dos jardins da Escola Secundária de Foz Côa...
Fazer um festival fora dos grandes centros continua a ser tão difícil e desafiante como há 33 anos?
Hoje estamos perante um contexto completamente diferente. Confesso que, como programador, é agora mais desafiante ainda porque é cada vez mais difícil hoje assegurar um público numa cidade do interior quando a proposta de programa implica a literatura e não passa por facilidades que hoje em dia se tornaram comuns, mesmo em instituições com grandes meios. É mais difícil precisamente porque há "concorrência desleal" nessas regiões, com propostas simultâneas que são na verdade subprodutos culturais. É um quadro nefasto para a cultura, que continua nos nossos dias a ser o eixo de resistência à massificação, à mediocridade do espetáculo mediático em que se tornou o espaço público, sobretudo o televisivo. A orientação das nossas políticas culturais precisa também de ser revista: há um ciclo viciado, com grupos favorecidos, que capturam inclusive o potencial de patrocínios empresariais, o que não favorece inovação. Além da desconfiança sobre a qualidade dos projetos que se realizam no interior. Em virtude talvez da ignorância dos decisores políticos e daquele problema estrutural de que falava Fernando Pessoa.
Já é tempo de os autarcas começarem a cuidar um pouco mais as atividades culturais, questionarem contratos para coisas medíocres, meros pacotes de empresas que se servem da cultura como rótulo para fazer negócio com as autarquias. Infelizmente a atividade das Câmaras, na sua maioria, não tem sido pautada por critérios de qualidade.
O que há a fazer para envolver mais a comunidade, por forma a que marque presença no festival?
Esse trabalho deve ser desenvolvido com mais profundidade, obviamente com as estruturas locais e regionais: com as associações, museus, juntas de freguesia, convidando mais pessoas de várias sensibilidades a participar com propostas específicas, e sobretudo com os mais jovens. Deve por isso continuar o trabalho de parceria com as escolas. A Associação SOMA vai assinar um protocolo com o Agrupamento de Escolas de Vila Nova de Foz Côa precisamente com esse objetivo, com base numa proposta feita enquanto decorria o Festival.
O que é possível adiantar em relação à próxima edição?
Dependerá dos recursos financeiros. Se houver participação do Estado, será dado o primeiro passo para a internacionalização do Festival, fase há muito aguardada. Contamos com projetos novos, a eventualidade de estreia de espetáculos em coprodução, à semelhança do que aconteceu agora com a performance poética que apresentou o coletivo Sindicato do Credo, outros que podem surgir de desafios que vão ser propostos às actrizes Maria José Paschoal e Maria José Baião mas também ao músico Chalo Correia, que participaram este ano pela primeira vez.