Já está nas salas “Não Sou Nada – The Nothingness Club”, de Edgar Pêra, um dos acontecimentos cinematográficos do ano. O JN falou com o realizador.
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Um dos cineastas portugueses de universo mais singular, Edgar Pêra transforma a sua paixão por Fernando Pessoa num objeto fílmico como nunca se viu, em “Não Sou Nada – The Nothingness Club”, concebido como uma viagem ao interior da cabeça do escritor e dos heterónimos de que se rodeou. O filme estreia hoje e é de visão obrigatória para quem tem esperança na existência de um cinema novo. O JN esteve à conversa com o realizador.
De onde vem esta paixão pelo universo de Fernando Pessoa?
Vem logo a seguir à revolução, com o Álvaro de Campos. Com a ideia de criar um outro tipo de homem novo. Fazer uma revolução das mentalidades. Isso e o Almada Negreiros, também. O “Caminhos Magnétykos” tinha essa misturada. Depois apareceu “O Livro do Desassossego” e nunca mais fui o mesmo. É o livro ideal para pessoas como eu, que gostam de fazer o seu próprio livro.
É preciso ser um iniciado em Pessoa para entrar no filme?
Espero bem que não. Espero que seja um bónus para os iniciados. Na minha experiência em festivais internacionais, onde as pessoas não conhecem o Fernando Pessoa, só as do mundo literário, senti exatamente aquilo a que me tinha proposto e que era criar curiosidade na obra dele. Perceber a complexidade dos pontos de vista dele. Tão complexo não conheço, em lado nenhum.
Acha que ele iria gostar do filme?
Se ele existisse durante a feitura do filme, o filme não seria este. Ou seja, este filme é feito com base na sua existência. Podemos sempre imaginar filmes sobre nós, depois de nós não estarmos cá. E arrepiar-nos. Penso nisso às vezes. Eu considero o Fernando Pessoa um amigo, espero que ele goste da ideia.
O Fernando Pessoa é mais conhecido pelo seu nome e menos pela sua obra?
O Pessoa, e ele ficaria contente com isso, é um mito total, uma mistificação total. É um pouco como as descobertas eram para o antigo regime. Conhecido é o Ronaldo. O Fernando Pessoa não é conhecido, ponto final, parágrafo. Não é uma figura pop. Mesmo por cá há muita gente que tem uma ideia muito vaga do Fernando Pessoa. Conhecem uns slogans e têm um cartão multibanco ou qualquer coisa com a cara dele.
Considera que este é o seu filme mais pessoal?
Eu vejo este filme como a continuidade do “A Janela (Maryalva Mix)”. A ideia de heteronímia, os vários egos dentro do próprio ego. A mesma atriz fazer sete papéis diferentes e sete atores diferentes fazerem um só papel, tem o lado pessoano da multiplicação dos pontos de vista. Mas este filme corresponde a uma fase e o outro corresponde a outra. Acho até que o outro é extremamente pessoal. Mas este tem mais a ver com a minha pessoa hoje. Eu nunca faria este filme há vinte anos.
No seu imaginário, onde foi buscar inspiração para a construção visual do filme?
Comecei por imaginar um edifício com a forma da cabeça do Fernando Pessoa, com um chapéu. Até tinha pensado o filme em 3D, que foi desaparecendo. Entretanto o produtor, o Rodrigo Areias, mostrou-me uma fábrica vazia na Vila das Aves. Eu já tinha desistido de fazer a cabeça e o que me faltava era uma espécie de estúdio. E ali era perfeito, a minha ideia foi sempre pôr os heterónimos a escrever para o Fernando Pessoa. Ao entrar naquela fábrica, naqueles escritórios dos anos 30, surgiu o próprio filme.
O filme pode ser visto também como uma reflexão sobre o próprio cinema?
O Pessoa tinha vários projetos para fazer dinheiro. Um deles era uma produtora de cinema. Ele tinha uma ideia do que era o cinema. Mas aparte aquela citação muito conhecida do Ford lá pelo meio não vejo isto como um filme sobre o cinema. É um filme sobre as paixões, sobre estar apaixonado por aquilo que se faz e qual é o espaço que se pode dar aos outros. Que espaço de paixão é que sobra. Isso é um problema do Pessoa e de alguém que seja muito apaixonado pelo seu trabalho.
Está prevista alguma circulação do filme pelas escolas?
Eu gostava muito que os jovens vissem, e espero que vejam, mas não queria que se sentissem obrigados a vê-lo. O filme obedece a ritmos que acho que estão em sintonia com os tempos de hoje Não sinto que um jovem se sinta excluído do tipo de registo do filme. A curiosidade já é outra coisa. E esse dado não se pode forçar. Ou há ou não há.