"Eduardo Lourenço sabe que não há regras para quem arrisca o jogo radical de todas as dúvidas"
"Eduardo Lourenço era um extraordinário poeta", defende Pedro Eiras, escritor e professor de Literatura Portuguesa, num texto partilhado com o JN.
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Não digo nada de novo, se disser que Eduardo Lourenço é um extraordinário leitor de poesia. Todos os meus alunos o sabem: passo as aulas a recomendar-lhes Pessoa Revisitado, Poesia e Metafísica, Tempo e Poesia, O Lugar do Anjo.
Nos meus artigos, regresso sempre a esses livros inspiradores; e num ensaio que escrevi para a revista Relâmpago, há anos, tentei ler a leitura de Pessoa por Eduardo Lourenço, ler o Pessoa que Eduardo Lourenço inventou, porque se inventa o autor que se lê apaixonadamente.
Não digo nada de novo, então, se disser outra vez que Eduardo Lourenço é um extraordinário leitor de poesia. Mas neste breve testemunho quero defender, antes, que Eduardo Lourenço é um extraordinário poeta.
Porquê? Por causa daquilo que escreve em «Crítica e metacrítica», texto de abertura de Tempo e Poesia, assumindo um desafio radical:
"À obsessão de julgar a Obra, antepôs-se-me a urgência de uma espécie de osmose com ela, de modo a que o meu discurso sobre ela fosse uma espécie de duplo não do seu próprio discurso - o que nenhuma Obra é - mas da claridade, da evidência interna, no movimento, em suma, da vida iluminante que na Obra existe, por ser o que é."
Que nome dar a um crítico que se recusa a julgar a obra, que abdica da suposta superioridade teórica sobre o texto analisado, o objecto positivamente descrito? Que nome dar, por outro lado, a quem não pretende duplicar o texto lido, repeti-lo ou imitá-lo, mas aferir a têmpera específica da sua luz? Nem a sobranceria científica ou clínica, nem a cópia epigonal e afrouxadora; e como é difícil definir essa leitura sensível, humilde, exacta: pois o ensaio sobre literatura deve acolher, explica Eduardo Lourenço, a luz emitida pelo texto, e depois rever o mundo a essa luz, a que revela o invisível.
A escrita sobre a literatura sabe, é claro, factos, datas e títulos; pode medir e pesar, dispor em ordem a desordem das coisas; mas o essencial, em Eduardo Lourenço, não está nesse mero domínio do saber. Pelo contrário, o essencial começa quando se perdem as certezas e se arrisca a linguagem. Experiência literária, costumamos então dizer, experiência da poesia. Decerto; ora, o que define Eduardo Lourenço é precisamente essa experiência que define a poesia.
Cito agora um passo de Pessoa Revisitado:
"O poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem. Isso pressupõe que a linguagem possa dizer o ser. Por essência a poesia nunca duvidou disso, ou duvidou afirmando-se através dessa dúvida."
Estas frases surgem a propósito de Fernando Pessoa, claro, mas são também o auto-retrato do ensaísta com a poesia ao fundo. Pois também Eduardo Lourenço é «aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem», e essa linguagem chama-se Heterodoxia, O Labirinto da Saudade, O Canto do Signo.
Também Eduardo Lourenço experimenta pensar que «a linguagem possa dizer o ser», e, se atravessa a paixão da dúvida, avança «afirmando-se através dessa dúvida», arriscando o ensaio como lugar de um questionamento radical da linguagem e das relações da linguagem com o mundo.
Por isso o ensaísta não contempla clinicamente os mecanismos da poesia, não estuda a frio um objeto separado, autónomo e distante. Pelo contrário, a sua escrita é dúvida e luta e paixão da verdade, linguagem sobre a linguagem a duvidar de si mesma, aqui e agora, no interior do próprio ensaio, que também é feito de linguagem, assim:
"Pessoa sonhou por nós, e antes de nós, os sonhos plausíveis que são para cada um dos seus leitores as suas obras. Os seus reflexos contemplam-nos sem que possamos ver o olhar absoluto que dá sentido a esses reflexos. Existe um tal olhar? Se existe e na medida em que existe é o que preside a todos os sonhos. O do Sonhador. Quem?"
Estas linhas no fim de um ensaio de Pessoa, Rei da nossa Baviera não instauram a tranquilidade das grandes certezas científicas, teóricas, ou metafísicas; pelo contrário, geram desassossego, alguma angústia, até uma inesperada espécie de medo.
As regras tácitas da escrita científica dizem que não se termina um estudo com perguntas; que não se invoca o «nós» dos leitores, imprevisíveis; que não se inventa uma personagem obscura, ainda por cima com maiúscula.
As regras dizem, mas Eduardo Lourenço sabe que não há regras para quem está a arriscar o jogo radical de todas as dúvidas, para quem se afirma através da dúvida.
Por isso estas frases não são frases sobre as dúvidas da poesia, sobre o combate entre a linguagem e a realidade, sobre a paixão da dúvida e do desassossego; as frases são a própria dúvida, o próprio combate, a própria paixão. Por isso chamo a Eduardo Lourenço poeta. Um extraordinário poeta.
(Texto originalmente publicado na edição nº 22: da revista Textos e Pretextos, 2019)