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Era sábado, dia indefinido numa Indonésia multirreligiosa. Mas a ilha era a das Flores, onde os nomes ainda soam lusos, entre os gritos dos muezins e os sinos das igrejas. Por ali, há sagrados corações à entrada dos casebres. Por ali, os bares de uns respeitam o jejum dos outros e as bebidas só escorrem com o sol posto. Por ali, porque é sábado, toma-se banho nas bicas de beira de estrada. E, porque é sábado, há… comunhões. Que são em jeito de casamentos. Ao grito "stop!", o motorista - fã de Bob Marley - estaca o carro. Para trás ficavam hordas de putos a caminho de casa, pasta num braço, prato no outro, porquê? "Anda! Anda!" ou algo do género, a linguagem é gestual, não há ponte de compreensão possível. Homens de um lado, mulheres do outro, uma mesa de mistura para animar a coisa e, ao fundo, a estrela da festa. Num palco, ao lado da mãe e da avó, cálices sagrados desenhados a branco em pano de fundo, frente a uma plateia de cadeiras de plástico. Puxam-nos, oferecem-nos assento, comida, bebida, o cumprimento da pequena, olhar fechado de frete, a única que não sorri quando a música se levanta. Há tradições cujo peso é difícil de suportar. Lá adiante, sem Cristo, a tradição é única das Flores. São campos de arroz em forma de teia de aranha, cuja visão ao alcance de uma assinatura de presença nas páginas incertas de uma resma de papel estendida por um olhar franco. Poeirento e ranhoso. As terras são da família que enterra os mortos no jardim fronteiro da casa, se quiseres ver a teia de cima, assinas e pagas. Uma ninharia que, em Ruteng, vale ouro. Como vale aquele café, inigualável, que outra família - a do neto pródigo que fez vida de motorista na cidade portuária, Labuhanbajo, o mundo grande longe dos montes tropicais, um amontoado de barcos ferrugentos, uma ruela principal, uma caixa multibanco - oferece sem mais. Na esteira estendida sobre a terra batida da sala, 21 familiares à roda, uma mulher a dar a mama ao filho e as temíveis galinhas soltas, aqui e junto ao bico de gás que aqueceu a infusão. A gripe das aves é uma ilusão dos citadinos. Aqui só há sorrisos desinteressados. E sagrados corações.
