A mais recente criação de Marco Martins desmonta a relação que temos com as memórias e a figura paterna. Construída para e pelos intérpretes Beatriz Batarda e Romeu Runa, ela atriz e ele bailarino, subiu ontem ao palco do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, e hoje repete-se com uma segunda sessão.
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Nos bancos do auditório, os espectadores vão encontrar quatro postais que são peças de um diário que a personagem de Beatriz Batarda, sem idade e sem nome, construiu durante quatro viagens que realizou com o pai por museus e igrejas. O espetáculo estabelece ligações sobre a relação da imagem com o pai que vão servindo de base ao diário. Mas será verdade ou ficção? Segundo o encenador Marco Martins, que realizou "São Jorge" e "Alice", "é uma ficção que foi criada pelas nossas memórias pessoais".
Ou seja, é uma peça que desconstrói a forma como nos relacionamos com as nossas memórias, o que é que guardamos delas, o que é que escolhemos guardar, de que forma é que elas nos perseguem e nos influenciam ao longo da vida, misturando tudo isto com a forma como a autoridade paterna exerce sobre nós um poder formativo, "esta ideia dos nossos pais enquanto entidade que está sempre presente de várias formas", descreve o encenador.
Aliás, a dada altura, a personagem de Beatriz Batarda está numa conversa com o pai, ela diz que está a trabalhar sobre memórias e ele diz-lhe que a memória não é fixa. E pergunta-lhe: "Onde é que começa a memória e começa a ficção?" A atriz, que nesta peça também sobressai na dança, explicou no final, em entrevista, que as memórias pessoais costumam ficar fora do processo criativo, mas aqui foi diferente: "Neste espetáculo essa teoria foi difícil de respeitar porque não é bem uma personagem e houve desde o início um desejo grande de encontrar textos e situações que refletiam as nossas histórias pessoais, do Romeu e minhas".
A figura central
"Perfil perdido" é uma peça que resulta de três residências artísticas e só podia ser construída com uma grande cumplicidade entre Beatriz Batarda e Romeu Runa. Sem tempo fixo, são exploradas várias disciplinas artísticas, desde as artes plásticas à interpretação, mas também música, literatura, bailado e ilusionismo. Embora tenha sido anunciado como um espetáculo de teatro e dança, derruba claramente as fronteiras entre as duas disciplinas artísticas, num processo que resultou "de um encontro com um material novo, gerado pelas improvisações dos intérpretes", desvenda Marco Martins.
Este é um jogo de personalidades em que os protagonistas são várias personagens que se reconstroem constantemente, com base na filiação. Esta ligação de uma pessoa a outra a partir do reconhecimento da parentalidade esteve sempre presente ao longo do trabalho de Marco Martins, mas nunca de forma tão direta.
"Ao longo de vários meses e residências a figura do pai foi-se tornando no centro do espetáculo. Para todos nós a figura do pai é uma figura central e fomos trabalhando textos de diversos autores que nos permitiam abordar essa questão de uma forma que é simultaneamente ficcional e biográfica", diz. Os testemunhos de criadores como Shakespeare, Kafka, Bacon ou Sófocles são, assim, sobre as suas relações com as respetivas autoridades paternas.
Os diálogos são transversais à filha, ao pai e aos intérpretes, mas também (e muito) ao espectador. No final, através de uma espécie de alegoria com algum ilusionismo à mistura, a interpelação é mesmo direta.