De olhar fixo no maestro e com as mãos firmes nas baquetas, Maria do Carmo Silva imprime cada nota no bombo com precisão. O som grave é quase impercetível para a açoriana de 46 anos, que nasceu surda, mas nem por isso deixa de fazer música. As vibrações do chão de madeira enchem-lhe os olhos, ouvidos de quem não ouve, para entrar no ritmo dos restantes instrumentos.
Corpo do artigo
https://d23t0mtz3kds72.cloudfront.net/2022/06/projeto_som_sim_zero_acores_20220623160744/mp4/projeto_som_sim_zero_acores_20220623160744.mp4
Com a banda que integra desde abril, Maria do Carmo Silva viaja agora até ao continente, para atuar amanhã no Rock in Rio Lisboa. O grupo Som Sim Zero, composto pela Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM), pela Escola de Música de Rabo de Peixe e pelo coletivo artístico ondamarela quer mostrar que a música não tem barreiras e que pode ser audível e silenciosa, recheada de línguas faladas e gesticuladas.
A ideia de incluir a comunidade surda da maior ilha açoriana num espetáculo musical surgiu em 2018, impulsionada pelo festival Tremor. Quatro anos depois, a atuação no Rock in Rio traz o sentido de dever cumprido. "O projeto nasce da descoberta de que os surdos da ilha nunca tinham ido a um concerto e o Tremor convida-os a serem, eles próprios, o concerto. Neste momento, a ASISM não só cria o texto poético, em língua gestual e não só, como cria o som, toca percussão e muitas vezes é o cérebro dos conceitos dos espetáculos", explica Ricardo Baptista, maestro da banda inusitada e cofundador da ondamarela.
"é um sonho"
No Cineteatro Miramar, em Rabo de Peixe, desenha-se o espetáculo sob as instruções do maestro. A batuta é substituída por gestos para que todos entendam a ordem. Atrás dos bombos comandados pela comunidade surda, os músicos da freguesia açoriana compõem a melodia, partindo de um poema de John Donne. "Nenhum homem é uma ilha", gritam, com a voz e com as mãos. A missão dos Som Sim Zero também é esta: combater o isolamento insular e transformar o sonho das crianças da Escola de Música de Rabo de Peixe em realidade. Com o dia 25 de junho em mente, a ansiedade toma conta de Angélica Palrão, que com 13 anos vai viajar de avião pela primeira vez para levar o som da sua flauta transversal a Lisboa. "Estou muito ansiosa, mas se fui escolhida é porque estou a sair-me bem e isso deixa-me muito orgulhosa". Apesar de ter curiosidade em saber como é que os surdos ouvem a música, nunca ganhou coragem para lhes perguntar, mas diz estar "a amar" a experiência da partilha no palco.
No cruzar de vivências e gerações, Miguel Lima, 52 anos, abana a cabeça ao ritmo do som e comanda o grupo da ASISM como ninguém. A infeção que lhe afetou a audição aos oito anos não o impediu de ser um apaixonado pela música: "O surdo sente a música de forma diferente e no meu caso é através da vibração e da parte sonora, porque ainda oiço". Lima afirma que há uma grande "união e intercâmbio entre surdos e ouvintes" e que quatro anos após se terem juntado, vai ser uma emoção pisar o palco do Rock in Rio. Com a ajuda de Vanda, intérprete de Língua Gestual Portuguesa, Miguel Lima aponta: "No futuro, gostava de ir a outro país apresentar um espetáculo. É um sonho".
Concerto de meia hora junta 40 artistas em palco
O espetáculo dos Som Sim Zero no Rock in Rio Lisboa surgiu a convite da Fundação Galp, que desde 2019 apoia o projeto de impacto social no festival Tremor, nos Açores. A atuação de 30 minutos vai juntar em palco 15 elementos da Associação de Surdos da Ilha de São Miguel, 15 elementos da Escola de Música de Rabo de Peixe, seis músicos da ilha de São Miguel, duas intérpretes de Língua Gestual Portuguesa e três elementos da ondamarela. O guarda-roupa foi oferecido por duas empresas de Guimarães.